“Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime” (Hannah Arendt).
A interpretação e a efetivação dos direitos fundamentais apresentam inúmeros desafios tanto para o exercício jurisdicional como para as investigações da ciência jurídica. Dentre outros motivos, a falta generalizada de construção de parâmetros claros e sistemáticos é um dos principais fatores que levam à situação de ineficácia e de crise de legitimidade dessa categoria de direitos.[1] Tal problemática, no entanto, é ainda mais acentuada no caso do(s) direito(s) à liberdade de expressão.[2]
Considerada como a pedra angular dos sistemas democráticos ocidentais, a liberdade de expressão é alvo de intermináveis debates acadêmicos, políticos, filosóficos e jurídicos. Do aspecto da estabilização de conflitos sociais, esse oceano de incertezas não é um ambiente favorável para a proteção jurídica de uma liberdade tida como o tesouro desse modelo político. Constantemente violada e utilizada como instrumento retórico dos atores sociais e políticos, a liberdade de expressão fica à deriva dos caprichos particulares e das interpretações casuísticas da pessoa ou do órgão competente para dirimir os conflitos concretos.
Em momentos de crise econômica e política, a funcionalidade e eficiência do ordenamento jurídico é constantemente colocado à prova e, não raras vezes, os princípios basilares do Estado de Direito são suplantados pelas minorias detentoras do poder. Nesse contexto, a liberdade de expressão é um dos primeiros – talvez o favorito – alvo do autoritarismo. Não é à toa que uma das principais lições aprendidas pela tradição jurisprudencial norte-americana sobre o tema é o reconhecimento jurídico e dogmático do “efeito crise” (crisis effect): em tempos de crise, a sociedade, em especial o Estado, tende a se tornar extremamente intolerante e, por isso, condenar expressões e comunicações consideradas perigosas, subversivas ou mesmo que não agradem os interesses e a conveniência do Estado e seus prepostos. Para se opor a essa pesada realidade, a jurisdição e a ciência jurídica precisam criar aparatos normativos sólidos para encaminhamento desses casos.[3]
Apesar de não faltarem exemplos brasileiros de autoritarismo, direto ou velado, o caso do cerco formado contra o professor de direito Conrado Hübner Mendes (USP) ilustra muito bem o nível alarmante da proteção da liberdade de expressão no país e a desvalorização dos processos democráticos de comunicação, em especial a divulgação científica.
Em uma coluna no jornal Folha de São Paulo, o professor Conrado constantemente tece críticas aos membros que compõem as principais instituições públicas brasileiras, particularmente aquelas ligadas ao Judiciário. Embora na maioria das vezes sejam colocadas de forma ácida e sem moderação nas ironias, suas críticas são baseadas em conceitos e desenvolvimentos da ciência jurídica e política, além de análises dos próprios parâmetros normativos aplicáveis aos fatos comentados. Por conta disso, tanto o Procurador Geral da República (PGR), Augusto Aras, como o mais novo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Kassio Nunes Marques, tomaram iniciativas para processar o colunista e professor.
Em seus escritos, Conrado Hübner já chamou o PGR de “Poste Geral da República” para afirmar que ele “é a antessala do fim do Ministério Público Federal tal como desenhado pela Constituição”. Por esses e outros supostos abusos no exercício de sua liberdade de expressão, o Professor foi processado criminalmente por Aras pelos delitos de injúria, difamação e calúnia. Em 15 de agosto de 2021, a juíza de primeiro grau da Justiça Federal da 1ª Região absolveu o jurista, pois não verificou a existência de dolo específico para cada um dos respectivos tipos penais, assim como entendeu, com uma interpretação conjunta dos incisos IV e IX do artigo 5º da Constituição, que a liberdade de expressão atribui amparo “àquele que emite críticas, ainda que inconvenientes e injustas”.[4]
Em relação ao Ministro Nunes, o Professor criticou sua decisão monocrática e liminar que liberou, em meio a um momento crítico da pandemia e às vésperas do feriado de Páscoa, os cultos em templos religiosos em todo país. Sua decisão foi derrubada pelo plenário do Supremo alguns dias depois. Hübner, em seu texto na Folha, referiu-se ao Ministro como “juiz mal-intencionado e chicaneiro” que “encomendou milhares de mortes” no contexto da pandemia. O Ministro considerou que as críticas eram ofensivas e extrapolavam “a crítica construtiva” e, por isso, acionou a PGR contra o Conrado, também com base nos mencionados crimes contra a honra.[5]
Embora ainda não tenha ocorrido a condenação de Conrado Hübner, o fato dessas iniciativas serem oriundas de importantes autoridades públicas relacionadas ao Direito e ao Poder Judiciário acende uma luz amarela sobre o problema da proteção jurídica da liberdade de expressão. Nesse contexto, dois pontos precisam ser levantados: um sobre o sentido e extensão constitucional da liberdade de expressão e outro sobre sua relação e importância para a ciência jurídica.
Não existe regra geral ou uma única forma de um comunicador atingir o seu público. Piadas, ironias, palavras cordiais, atitudes de reverência, gestos, imagens, dentre tantas outras modalidades de expressão são estratégias comunicativas que devem ser escolhidas pelo emissor a depender de seus objetivos e do contexto no qual se encontra. Do aspecto jurídico-dogmático, independente da forma linguística em que as críticas de Conrado foram apresentadas, sancioná-lo, civil ou criminalmente, por seus comentários é inadmissível em um sistema jurídico que assegure a liberdade de expressão e tenha como objetivo sustentar uma democracia. A história e a experiência jurídica estrangeira da liberdade de expressão comprovam isso.
A despeito do ordenamento jurídico e dos critérios normativos aplicáveis, à proteção de discursos políticos, especialmente aqueles críticos e contestatórios ao Poder Público e suas autoridades, constituem o centro de proteção dessa liberdade. Nos Estados Unidos da América, os primeiros delineamentos normativos de uma proteção consistente à liberdade de expressão surgiram no cenário onde foram editadas normas com o objetivo de coibir críticas ao governo e, de maneira mais específica, sua participação na Primeira Guerra Mundial. Atualmente, os discursos de natureza política são considerados expressões de “alto valor”, uma categoria jurídica utilizada, juntamente com a avaliação do método regulatório escolhido pelo Estado, para permitir o controle de constitucionalidade das restrições à liberdade de expressão. A não ser que sejam neutras quanto ao conteúdo, as limitações de expressões políticas são inconstitucionais.[6]
Na Europa, apesar do continente ser juridicamente heterogêneo, existe uma linha comum nos parâmetros normativos da liberdade de expressão que lhe atribui uma robusta proteção quando envolve comunicações críticas e direcionadas ao Estado, mesmo quando adotada uma metodologia de aplicação dos direitos fundamentais “casuística”, como a teoria dos princípios e a ponderação de direitos. É possível extrair tal conclusão da própria jurisprudência no âmbito supranacional.[7]
Por exemplo, no antigo e notório caso Handyside v. Reino Unido, um importante precedente para a cultura jurídica europeia, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos estabeleceu que a proteção dessa liberdade alcança ideias e informações que “ofendam, choquem ou perturbem o Estado ou qualquer setor da população”.[8] A mesma linha é seguida pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o qual atribui ainda mais importância jurídica para a manifestação de opiniões e informações de natureza política e contestatória, considerando a realidade histórica de autoritarismo que marca a América Latina.[9]
O panorama normativo não é diferente no Brasil. A jurisprudência do STF sob a égide da Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma ampla proteção à liberdade de expressão, a qual foi até mesmo considerada como um direito preferencial no sistema constitucional nacional. Na esteira dos acontecimentos que envolveram o Professor Conrado, é contundente a seguinte passagem:
A crítica jornalística, quando inspirada pelo interesse público, não importando a acrimônia e a contundência da opinião manifestada, ainda mais quando dirigida a figuras públicas com alto grau de responsabilidade na condução dos interesses de certos grupos da coletividade, não traduz nem se reduz, em sua expressão concreta, à dimensão do abuso da liberdade de imprensa, não se revelando suscetível, por isso mesmo, em situações de caráter ordinário, de sofrer qualquer repressão estatal ou de se expor a qualquer reação hostil do ordenamento positivo.[10]
A importância dogmática da natureza pública da pessoa objeto de crítica é tão importante para a jurisprudência constitucional pátria que mesmo quando o caso envolve atores do setor privado, mas que tenham notoriedade social, a decisão deve ser em prol à liberdade de expressão, como ocorreu no “caso das bibliografias não autorizadas”.[11]
Assim, mesmo com uma breve análise jurisprudencial e sem adentrar nos densos aspectos particulares dos próprios textos normativos, tanto a experiência nacional como a do direito comparado, demonstram que investidas de autoridades públicas contra divulgadores científicos, como Conrado Hübner, mais do que violações à liberdade de expressão, são iniciativas cobertas de autoritarismo. O fator de complexidade que circunda o caso Conrado é o fato de as autoridades envolvidas também serem aquelas que a Constituição Federal atribui competência para, justamente, zelar pelos direitos fundamentais, o Estado Constitucional de Direito e, enfim, a própria democracia. Esse é, inclusive, um dos paradoxos mais intrigantes dos sistemas jurídicos e extremamente debatido na teoria geral do direito.[12]
Diversas hipóteses e métodos podem ser levantados para contornar esse paradoxo. Uma das soluções mais promissoras, no entanto, é o trabalho consistente da própria academia e da ciência jurídica (ou, nas palavras de Hans Kelsen, um dos principais intérpretes não autênticos do Direito e da Constituição).[13] Para que, na prática, a Constituição e os direitos fundamentais não se resumam àquilo que o Tribunal Constitucional (o STF, no caso brasileiro) diz ser, e para que os métodos institucionais e jurídicos de controle normativo se tornem, eles mesmos, controláveis, é necessário que a ciência jurídica atue de forma sólida na produção, revisão e crítica de critérios dogmáticos de aplicação do Direito.
Identifica-se, então, a relação de simbiose entre a liberdade de expressão e a ciência jurídica. Se, por um lado, a proteção jurídica da liberdade de expressão é aperfeiçoada e garantida pelo desenvolvimento da ciência jurídica, essa, por outro, tem a liberdade de expressão como um elemento essencial não só para seu avanço, mas principalmente para a divulgação de seus frutos e, portanto, para o cumprimento de sua função social de controle da aplicação do Direito.
O problema é que, ao lado da própria jurisprudência, a ciência jurídica nacional vacila em sua tarefa de avaliação, coerente e fundamentada, dos parâmetros normativos e da própria aplicação do Direito. A liberdade de expressão é um exemplo disso. Embora a jurisprudência estabeleça, com a chancela da ciência jurídica, que essa liberdade, embora não ilimitada, é essencial para democracia e até mesmo possui um status preferencial no sistema constitucional, o que lhe assegura proteção em diversos casos concretos, não existe clareza sobre seu sentido, seu alcance e seus limites. Na prática, a decisão pela proteção ou não dessa liberdade é realizada quase que exclusivamente pela conveniência e oportunidade do julgador.
Em resposta ao caso Conrado, o Ministro Kassio Marques afirmou que “os direitos à liberdade de expressão e de imprensa livre são fundamentais para a manutenção do regime democrático”, no entanto o “abuso desses direitos também deve gerar responsabilização”.[14] Já em defesa do Professor Hübner, Daniel Sarmento (que também é professor de direito constitucional) declarou que Conrado “se tornou o mais importante e corajoso crítico das instituições do nosso sistema de Justiça”, a qual veio acompanhada pelo argumento de “não há verdadeira democracia quando as instituições e autoridades públicas não podem ser criticadas, inclusive de maneira contundente, jocosa, e até eventualmente injusta”.[15]
Embora o apoio à atitude de Conrado Hübner por parte de seus pares seja necessário, é insuficiente. Para um avanço na proteção jurídica da liberdade de expressão (e de todos os direitos humanos e fundamentais), é necessário mais do que argumentos genéricos e com forte apelo político e/ou moral, os quais, no fim do dia, servem para dar quórum a um ou outro posicionamento, não muito diferente de como são as votações acompanhadas de exposição de fundamentos no Congresso Nacional ou em apenas uma reunião de grupo de trabalho da escola.
Ambas as afirmações (Marques e Sarmento) resumem o estado da arte da dogmática brasileira: apesar de terem algum lastro teórico e ecoarem bem abstratamente, não resolvem os problemas práticos de maneira satisfatória. Atualmente, se nem mesmo as perguntas cruciais são formuladas, o que se dirá das respostas.
Quais são os direitos que compõem a dita liberdade de expressão? Os incisos IV e IX do artigo 5º da Constituição devem ser interpretados individual ou conjuntamente? Quais são as diferenças dogmáticas e práticas dessas duas linhas interpretativas? Se Hübner tivesse feito suas críticas de forma anônima em uma plataforma digital qualquer, o que aconteceria? Nesse caso, de quem seria a responsabilidade (civil ou criminal) e qual a relação disso com a liberdade de expressão? O que significa a vedação da censura e esse limite pode, ele mesmo, ser limitado? O discurso de um político que incita ataques contra a democracia é semelhante aos textos escritos por Conrado? Aliás, alguém investido de um cargo político é titular dos direitos à liberdade de expressão? Essas são algumas das perguntas necessárias, mas que infelizmente a maioria da literatura jurídica especializada do país tem relegado.
O caso “Conrado Hübner” é, por tudo isso, um apelo para a qualificação e a reestruturação da própria ciência jurídica brasileira, a qual tem a tarefa sacramental de conduzir à criação de aparatos teóricos e instrumentos dogmáticos que permitam o adequado funcionamento da jurisdição a fim de não apenas garantir e efetivar os direitos fundamentais, mas guardar o Estado Constitucional de Direito e, em última análise, o próprio regime democrático.
[1] Sobre o tema e a importância da construção de parâmetros dogmáticos consistentes para a adequada concretização de direitos fundamentais pela jurisdição constitucional, conferir: RAMOS, Elival da Silva, Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. Do aspecto internacional, ver: FERREIRA, Felipe Grizotto; CABRAL, Guilherme Perez; LAURENTIIS, Lucas Catib de. O exercício da jurisdição interamericana de direitos humanos: legitimidade, problemas e possíveis soluções, Revista de Direito Internacional, v. 16, n. 2, p. 243–268, 2019.
[2] Liberdade de expressão é um termo consagrado para se referir às prerrogativas de produção, divulgação e transmissão de ideias e informações. Da perspectiva jurídica-dogmática, é possível existir diversos direitos para assegurar tais atos comunicativos, mas, desde que ciente disso, não há problemas jurídicos em se utilizar esse termo genérico. Nesse sentido: MACHADO, Jónatas. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 370.
[3] STONE, Geoffrey R, Free Speech in the Twenty-First Century: Ten Lessons from the Twentieth Century, Pepperdine Law Review, v. 36, p. 273–299, 2009, p. 278.
[4] Conferir: Justiça Federal. Processo 1031439-94.2021.4.01.3400, sentença de 15 de agosto de 2021. E REDAÇÃO. Justiça rejeita queixa-crime de Aras contra professor da USP, Nexo Jornal (16/08/2021). Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/extra/2021/08/16/Justi%C3%A7a-rejeita-queixa-crime-de-Aras-contra-professor-da-USP Acesso em: 28/08/2021.
[5] Conferir: CRUZ, Isabela. A ampliação do cerco ao professor da USP que critica autoridades, Nexo Jornal (28/07/2021). Disponível em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/07/28/A-amplia%C3%A7%C3%A3o-do-cerco-ao-professor-da-USP-que-critica-autoridades. Acesso em: 28/08/2021.
[6] SUNSTEIN, Cass R., Democracy and the problem of free speech. New York: Free Press, 1995, p.9 e ss.
[7] Sobre essa linha decisória comum: BAKIRCIOGLU, Onder, The Application of the Margin of Appreciation Doctrine in Freedom of Expression and Public Morality Cases, German Law Journal, v. 8, n. 7, p. 711–733, 2007.
[8]CONSELHO DA EUROPA. Tribunal Europeu de Direitos Humanos, Handyside v Reino Unido, 1976 parágrafo 48.
[9] Dentre diversos outros, conferir: Corte Interamericana de Direitos Humanos, Lagos del Campo vs. Peru, 2017.
[10] et 3.486/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Informativo/STF n. 398/2005.
[11] STF, ADI nº 4.815, 2015.
[12] Para ilustrar parte dessa problemática, cita-se a produção do próprio Conrado: MENDES, Conrado Hubner. Neither Dialogue Nor Last Word. Legisprudence, Vol. 5, No. 1, p. 1-40, 2011.
[13] KELSEN, Hans, Teoria pura do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 387-388.
[14] REDAÇÃO. Nunes Marques aciona PGR contra professor e colunista Conrado Hübner (Poder 360). Disponível em: https://www.poder360.com.br/justica/nunes-marques-aciona-pgr-contra-professor-e-colunista-conrado-hubner/). Acesso em: 28/08/2021.
[15] SARMENTO, Daniel. A perseguição contra Conrado Hübner Mendes e os riscos à democracia, Jota (26/07/2021). Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-perseguicao-contra-conrado-hubner-mendes-e-os-riscos-a-democracia-26072021. Acesso em: 28/08/2021.
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