Tema clássico até pouco tempo aparentemente escamoteado na processualística brasileira, de uns anos para cá cada vez mais vem retomando palco os questionamentos aos poderes instrutórios do juiz. Termômetro disso é o aumento de publicações cujo objeto é a colocação em xeque dessa instrução ex officio, sobretudo na esfera procedimental civil. O debate que antes era trazido, por vezes en passant, em alguns artigos científicos, hoje já conta com livros inteiros exclusivamente dedicados a esse enfrentamento[1].
A virada se deve à paulatina penetração do debate promovido pelo garantismo processual frente à hegemonia detida pelo publicismo processual. No Brasil, dominava praticamente inconteste a concepção do processo como instrumento da jurisdição e a consequente aposta numa postura ativa do juiz, de modo que esteja habilitado a resolver óbices no curso do processo, ainda que sem provocação/postulação das soluções pelas partes. Neste contexto, a atuação probatória de ofício se apresentava natural e até esperada.
Talvez um dos primeiros a catalogar com maior precisão e objetividade os problemas advindos desse ativismo probatório judicial foi o advogado chileno Hugo Botto Oakley. Orientado por Adolfo Alvarado Velloso, catedrático professor da Facultad de Derecho de la Universidad Nacional de Rosario (ARG), lá desenvolveu sua pesquisa de mestrado que originou o livro “Inconstitucionalidad de las medidas para mejor resolver”[2], publicado em 2001.
Na obra, Oakley defende abertamente a inconstitucionalidade dos poderes instrutórios do juiz, confrontando-os com o pressuposto processual de imparcialidade, em especial diante da constatação lógico-processual sobre a regra de julgamento (ônus da prova objetivo). Compila-se o problema da prova de ofício desde seu ponto de vista prático, concluindo que seu único resultado útil é, em regra, beneficiar o demandante (autor), isto é, aquele a quem incumbiria o ônus probatório.
Esses estudos foram importados para o Brasil, onde inspiraram, dentre outros, Eduardo José da Fonseca Costa, que, por sua vez, aprimorou e deu notoriedade ao argumento por aqui em seu artigo “Algumas considerações sobre as iniciativas judiciais probatórias”, apresentado no XIII Congreso Nacional de Derecho Procesal Garantista, ocorrido em Azul (ARG), em outubro de 2014, e posteriormente publicado na Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro), em abril de 2015[3].
No presente texto, todavia, não se pretende dar enfoque a essa tese lógico-processual de incompatibilidade da produção probatória de ofício perante as regras de atribuição do ônus probatório às partes, mas sim, ao capítulo quarto do citado livro de Hugo Oakley, em que é apresentada uma enquete, na qual se colheu opiniões de juízes e advogados sobre os poderes instrutórios ex officio.
Garantido o anonimato das respostas, a enquete buscava aferir o entendimento dos entrevistados acerca dos acertos e desacertos dos poderes instrutórios do juiz. Para tanto, primeiro foram entrevistados 8 juízes de 1ª instância, e, segundo, 8 advogados com experiência no contencioso civil.
Mutatis mutandis, adotando uma tradução livre e adequando à sistemática brasileira[4], aos juízes foram dirigidas as seguintes perguntas:
(1) É favorável à produção de provas ex officio quando as partes não apresentavam as provas que lhes correspondiam?
(2) É favorável à produção de provas ex officio quando as partes apresentaram provas que necessariamente devem ser complementadas por outras que não apresentaram?
As alternativas dadas como respostas eram: (a) sim, (b) não, (c) “depende” ou (d) “outra resposta”. O entrevistado poderia ou não as fundamentar.
Quanto à pergunta (1), houve três respostas afirmativas, equivalente a 37,5%; sendo duas delas sem fundamentação, e uma adotando como justificativa razões de “justiça”, ainda que se reconhecesse que não é missão do tribunal criar a prova para as partes. Houve duas respostas negativas, equivalentes a 50%. Os fundamentos dados se centravam na ideia de que não correspondia ao juiz suprir a falta de provas das partes. Houve uma resposta “depende”, equivalente a 12,5%, fundamentando-se a procedência das provas caso fossem necessárias para a resolução da matéria.
A partir também do teor das justificativas, a conclusão foi de que majoritariamente os juízes entrevistados estimam que não lhes corresponde suprir as deficiências probatórias do demandante. Excepcionalmente, por motivos de necessidades sociais de um litigante sem recursos, ou se for necessário resolver a questão, considera-se a procedência da prova de ofício.
Quanto à pergunta (2), houve seis respostas afirmativas, equivalentes a 75%; uma resposta negativa, equivalente a 12,5%; e uma resposta “depende”, equivalente a 12,5%. Os fundamentos afirmativos se centraram na procedência de se complementar a prova insuficiente em razão da busca por uma sentença justa, alcançar um conhecimento mais completo dos fatos para criar a convicção necessária do tribunal para resolver ou que seja essencial para a resolução do caso. A resposta negativa e a “depende” não foram fundamentas.
A conclusão foi de que, majoritariamente, razões de busca da verdade material justificam para os juízes a produção de provas ex officio complementares às produzidas pelas partes, para melhorar o seu conhecimento e convicção sobre os fatos, a fim de proferir uma sentença que assim se considere mais justa.
Já aos advogados foram dirigidas as seguintes perguntas:
(1) Como advogado defensor do demandante, é favorável que o juiz cível produza provas ex officio?
(2) Como advogado defensor do demandado, é favorável que o juiz cível produza prova ex officio?
(3) Considera a produção de provas ex officio racionais e justas?
Quanto à pergunta (1), só houve uma resposta afirmativa, equivalente a 12,5%, contra duas respostas negativas, equivalentes a 25%, e cinco respostas “depende”, equivalentes a 62,5%. A resposta afirmativa se baseou na possibilidade de que o juiz tenha dúvidas sobre algum fato que necessite de esclarecimento. As respostas negativas se fundamentaram em quão desnecessária é a produção dessas provas ex officio porque o autor tinha que apresentar todas as provas de seu pedido; e em uma posição “muito inovadora”, que seria facultar ao juiz a fixação de um prazo prévio às partes, antes da sentença, para que provas solicitadas oportunamente e não cumpridas ou materializadas, possam ser executadas. As respostas “depende” baseiam seus argumentos na conveniência que essas provas ex officio representam para o autor, mas referem-se a outros aspectos menos relevantes quanto à influência que tem no resultado do julgamento, especialmente para as expectativas de ganho do autor.
A conclusão foi de que as respostas obtidas não baseiam seus argumentos na conveniência que essas provas de ofício representam para o autor. Mas sim, se referem a outros aspectos de menor relevância no que diz respeito à influência que exercem no resultado do julgamento, principalmente para as expectativas vencedoras do autor.
Quanto à pergunta (2), contrastando-a com a pergunta (1), se invertem os resultados com duas respostas afirmativas, equivalentes a 25% e um negativa, equivalente a 12,5%, mantendo-se a resposta “depende” com cinco respostas, equivalentes a 62,5%. As respostas afirmativas se baseiam na falta de convicção a respeito das provas apresentadas pelo autor e a necessidade de esclarecer dúvidas que o juiz possa ter. A resposta negativa reitera o argumento da pergunta (1) anterior, relacionando a faculdade de produzir provas ex officio a um prazo prévio às partes antes da prolatação da sentença, quando não as realizaram a tempo e modo, conquanto as tenham requerido oportunamente. A resposta “depende” também reitera os argumentos da pergunta (1) anterior.
A conclusão foi de que nenhuma resposta se refere ao inconveniente que são as provas ex officio perante a defesa do réu, relacionando-a com o princípio constitucional de defesa. Pelo contrário, baseiam-se em aspectos colaterais aos direitos e interesses da parte autora do processo.
Quanto à pergunta (3), majoritariamente existiu uma manifestação afirmativa, cinco respostas, equivalente a 62,5%. Houve três respostas “depende”, equivalente a 37,5% e nenhuma resposta negativa (o%).
A conclusão foi de que os advogados entrevistados de alguma forma questionam a possibilidade de que as provas ex officio possam não responder a parâmetros de razoabilidade e justiça do texto constitucional.
Como conclusões gerais e comuns às entrevistas dos advogados, verificou-se que: (i) justifica-se a produção de provas de ofício por motivos de dúvidas ou pontos necessários de esclarecimento sobre a prova prestada, por parte do juiz; (ii) os advogados do autor não percebem que sempre essas provas ex officio materialmente só podem favorecer a defesa desta parte do processo; e (iii) os advogados do réu não percebem que sempre essas provas ex officio materialmente só podem prejudicar a defesa desta parte do processo, sendo absolutamente desnecessárias suas produções em atenção à vigência e aplicação do princípio e garantia constitucional de presunção de inocência, que determina a inutilidade delas para o polo passivo.
Após terminadas as entrevistas, por sugestão de Alvarado Velloso, Oakley realizou ainda duas outras perguntas aos mesmos 8 advogados entrevistados:
(1) Considera a imparcialidade do juiz como um princípio fundamental do Direito Processual? Respostas: (a) sim (7 ― 87,5%); (b) não (1 ― 12,5%); (c) “depende” (0 ― 0%).
(2) Estaria disposto a afetar o princípio da imparcialidade do juiz em prol de algum outro objetivo? Respostas: (a) sim (2 ― 25%); (b) não (5 ― 62,5%%); (c) “depende” (1 ― 12,5%).
As respostas gerais dessa entrevista complementar, com exceção de uma, baseada na disposição de violar o princípio da imparcialidade do juiz em troca de fazer justiça, que o entrevistado chamou de “dar a cada um o que lhe é devido”, todas os demais responderam que o princípio da imparcialidade é essencial a qualquer processo e que não pode ser dispensado em favor de outros princípios ou objetivos. Conclusão essa que contrasta muito com as respostas dadas ao efeito na primeira pesquisa, onde há justificativas para se concluir pela possibilidade de mitigação do princípio da imparcialidade do juiz.
Em suma, como conclusões gerais a ambas as entrevistas, Oakley afirma que (i) existe convicção majoritária de que as provas ex officio não devem substituir as provas não produzidas pelas partes; (ii) há aceitação geral da procedência e conveniência das provas ex officio quando o juiz julgar necessário esclarecer pontos duvidosos da prova produzida; (iii) não há nenhuma consciência de que as provas de ofício só podem favorecer o autor; (iv) não há nenhuma consciência de que com as provas ex officio apenas o réu possa ser lesado, afetando o princípio e a garantia constitucional da inocência; (v) não há consciência de que com a produção de provas ex officio e as duas conclusões imediatamente anteriores, o juiz perde sua conduta objetiva de imparcialidade; (vi) somente quando o entrevistado é colocado no dilema de afetar o princípio da imparcialidade com essa produção probatória de ofício, que ele reflete e se inclina a preferir esse princípio a outros objetivos do processo.
Apesar de reduzida a amostragem do trabalho de campo conduzido por Hugo Botto Oakley, seus resultados e conclusões são intrigantes. Despertam o interesse numa nova abordagem de caráter quali-quantitativo, quiçá com mais dados e precisão estatística. Afinal, passados mais de 20 anos daqueles estudos de Oakley e quase 7 anos das considerações de Eduardo José da Fonseca Costa, quais seriam hoje os resultados de uma entrevista sobre a (des)conformidade dos poderes instrutórios do juiz no Brasil?
Acredito que essa possa ser uma pesquisa que, de certa forma, sirva de parâmetro para constatarmos o nível de difusão e aceitação do pensamento garantista entre juízes e advogados brasileiros. E por que não também dos membros do Ministério Público? E aí, como está a musculatura dogmática, ou o grau de maturidade da garantística entre nossos operadores do Direito? Como nos bons seriados: “to be continued…”.
[1] V.g. SPERANDIO, Pedro Lube. Contra os poderes instrutórios do juiz: a prova ex officio e a quebra de imparcialidade judicial. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2021. MUNDIM, Luís Gustavo Reis. Poderes instrutórios do juiz no código de processo civil e processualidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2022.
[2] OAKLEY, Hugo Botto. Inconstitucionalidad de las medidas para mejor resolver. Chile: Editorial Fallos del Mes Ltda., 2001.
[3] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Algumas considerações sobre as iniciativas judiciais probatórias. Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro), Belo Horizonte, n. 90, p. 153-173, abr./ jun. 2015.
[4] Compete esclarecer que o objeto de estudo de Hugo Botto Oakley era a legislação processual chilena, que previa as chamadas “medidas para mejor resolver”. A diferença em relação às provas de ofício previstas na lei brasileira é que, enquanto aqui as provas ex officio podem se dar em vários momentos do processo (ou “estados processuais” como Oakley se refere), lá as medidas para mejor resolver se aplicam tão somente quando o processo está em “estado de sentencia”.