JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE EM TEMPOS DE CRISE

até quando o Judiciário irá intervir em políticas públicas?

É uma constatação simples, no contexto brasileiro, de que a judicialização das políticas públicas tem atingido cada vez mais maiores proporções. O crescimento exponencial de demandas submetidas ao Judiciário traz à discussão os desafios a serem enfrentados no Estado Democrático de Direito quando o assunto é implementação de políticas públicas.

O tema ainda se agrava quando pensamos a necessidade de coalizar o direito fundamental à saúde e a implementação de medidas, ações e projetos para o desenvolvimento de políticas públicas.

Ao passo que a Constituição Brasileira de 1988 transformou à saúde como direito fundamental do cidadão e dever do Estado (art. 196, CF), certo é que a implantação do Sistema Único de Saúde ocorreu em um contexto de vulnerabilidade financeira do Poder Público, o que tem dificultado a distribuição igualitária de serviços de saúde, com a qualidade e eficiência trazida no texto constitucional.

A dimensão da judicialização da saúde no Brasil pode ser verificada por meio de números. Entre os anos de 2008 e 2017, o número de demandas judiciais relativas à saúde teve um aumento de 130%, conforme dados extraídos da pesquisa “Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e proposta de solução”, realizada pelo CNJ em parceria com o Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). Em outro dado, do total de mais de 78 milhões de processos em tramitação, cerca de 2 milhões relacionam-se ao direito à saúde. E, conforme apurado no relatório Justiça publicado em agosto de 2020, somente em 2019 foram ajuizadas 474.429 novas ações com demandas relacionadas a essa temática. É notório que o fenômeno intensificou-se na pandemia, sendo que, no período de três meses de vigência das medidas de prevenção ao contágio do novo coronavírus (março, abril e maio de 2020), foram ajuizadas mais de 3 mil ações[1]. (BRASIL, 2021).

Ocorre que, antes mesmo de estarmos em um contexto pandêmico e de crise de saúde coletiva, o Judiciário já vinha sofrendo com o abarrotamento de demandas envolvendo prestações e políticas públicas no campo da saúde, fenômeno este conhecido por “judicialização da saúde”, tratado no primeiro ponto deste trabalho.

O aumento do gargalho de acesso à jurisdição para se ver efetivado o direito fundamental à saúde, gera um problema de gestão de processos por parte do órgão julgador. Isso significa dizer que ao magistrado não cumpre resolver um único caso concreto envolvendo uma demanda ligada à saúde (ex: transferência hospitalar), mas tem o dever de entender e gerenciar que há diversos outros litigantes em condição análoga, e que determinar a vaga hospitalar para um, pode resultar na falta de um leito para outro.

Nessa esteira, Marco Félix Jobim e Hannah Pereira Alff ensinam que o Estado-juiz tem que partir da noção de que está diante de um problema social, ainda mais com uma pandemia, e por isso a gestão processual pode representar uma aliada:

Ainda mais em tempos de pandemia, o motivo do gerenciamento é essencial pela emergência e aumento de novos direitos. Quanto mais cedo sedimentar-se entendimento sobre determinados casos repetitivos, mais cedo poderão ser direcionados para a solução adequada. Isso não significa dizer que a gestão aumentará a velocidade com que os casos serão resolvidos, mas sim que poderão ser identificados de maneira mais tempestiva, trazendo maior equilíbrio na tramitação para a solução justa. A gestão procura encontrar uma solução adequada para a lide, consciente de que ela representa um problema social e quer resolvê-la, de uma maneira ou de outra, é uma incumbência do Estado[2] (JOBIM; ALFF, 2020, p. 343).

Continuando seus ensinamentos, os autores acima referenciados explicitam que a gestão de casos múltiplos pode contribuir para “uma busca por soluções de casos em larga escala,  beneficiando o maior número possível de pessoas que se encontram em igualdade de direitos[3]” (JOBIM; ALFF, 2020, p. 343).

Partindo da necessidade de uma melhor gestão de processos múltiplos, envolvendo as questões de saúde que, por sua natureza, se caracterizam por pretensões isomórficas, e muitas das vezes são promovidas por meio de ações individuais, deve ser entendido que o Judiciário tem que observar a questão por aspecto coletivo, de modo a otimizar processos judiciais e assegurar segurança jurídica.

Repise-se, a gestão de casos múltiplos é necessária por enxergar o problema como um todo e não apenas de um indivíduo específico que busca a tutela jurisdicional:

A gestão de casos múltiplos, neste sentido mais específico, é a espécie de gestão que se preocupa com o todo, ou seja, de uma visão global dos processos em andamento que devem ser tratados da mesma maneira por advirem de situação de igualdade de direito. Numa visão de macrojustiça, em que é preciso observar a completude dos processos judiciais em aberto, a gestão de casos múltiplos é tida como fundamental ao momento de crise pandêmica[4].

Nesse rumo, a proposta teórica mais adequada em tempos de pandemia é conferir ao Judiciário a possibilidade de realizar um case management, partindo de todos os casos existentes em uma determinada vara ou comarca, para apresentar uma resposta concreta ao problema de deficiência de políticas públicas no campo da saúde.

É preciso entender que não basta ser assegurado, por exemplo, um leito hospitalar ou um tratamento específico se dezenas ou milhares de cidadão estejam em condição igual ou pior, e que sequer vão ter a chance de obter uma tutela satisfativa da sua pretensão perante o Judiciário.

Quando observamos o colapso do nosso sistema de saúde advindo do Coronavírus, entendemos que não basta um cidadão obter para si uma decisão judicial, que seja em sede de liminar, se carece ao Poder Público de leitos, insumos, recursos humanos, dentre outras peculiaridades necessárias ao atendimento de saúde.

A este respeito, colaciona-se o escólio de Claudio Madureira e Hermes Zaneti Júnior entendendo pela necessidade do problema de saúde pública coletiva oriunda do COVID-19 ser solucionado por meios de técnicas processuais relativos aos processos estruturais, já que assim, a proposta de reformulação de políticas públicas no âmbito da saúde poderá atingir um número maior de cidadãos:

Dito isso, consideramos importante reforçar que, neste momento, os processos estruturais podem ser judiciais ou extrajudiciais, e que o Poder Judiciário tem o dever de realizar um case management (gerenciamento do acervo) vinculado à COVID-19, com o propósito de evitar duas situações igualmente indesejadas: (i) a falta ou deficiência do sistema de justiça nos casos em que sua intervenção à necessária para solucionar conflitos (proibição de proteção deficiente, na linguagem de direitos fundamentais) e (ii) o excesso do Poder Judiciário, com o agravamento ainda maior da crise do sistema de justiça em razão da sobrecarga de processos judiciais (overload) e/ou, o que seria ainda pior, decisões judiciais que sectarizam e contrariem as políticas públicas cientificamente como as mais adequadas para o combate da pandemia[5].

Importante realçar que não quer dizer com isso que o julgador será o responsável por determinar qual política pública deve ser implementada no âmbito de um município, a título ilustrativo, mas entender o problema afeto à saúde pública no contexto macro e perceber, em termos de consequencialismo, que o mero deferimento de uma liminar assegurando uma transferência hospitalar, não resolverá todo imbróglio.

Até porque do que adiantaria assegurar o direito fundamental de um único cidadão se centenas de outros estão sendo violados? Será que de fato só a partir de individualização da demanda é que resolveremos o problema de saúde pública no Brasil? Por certo não.

[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Soluções Consensuais podem conter judicialização da saúde. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/solucoes-consensuais-podem-conter-judicializacao-da-saude/>. Acesso em: 28 mar 2021.

[2] JOBIM, Marco Félix; ALFF, Hannah Pereira. Direito à saúde coletiva na pandemia: reflexões sobre o papel do Judiciário em gestão de casos múltiplos em tempos de crise. In: SOARES, Carlos Henrique; NUNES, Leonardo Silva; ÁVILA, Luiz Augusto de Lima. Direitos em tempos de crise: soluções processuais para a tutela de direitos coletivos e individuais. Belo Horizonte: Dialética, 2020, p. 343.

[3] JOBIM, Marco Félix; ALFF, Hannah Pereira. Direito à saúde coletiva na pandemia: reflexões sobre o papel do Judiciário em gestão de casos múltiplos em tempos de crise. In: SOARES, Carlos Henrique; NUNES, Leonardo Silva; ÁVILA, Luiz Augusto de Lima. Direitos em tempos de crise: soluções processuais para a tutela de direitos coletivos e individuais. Belo Horizonte: Dialética, 2020, p. 343

[4] JOBIM, Marco Félix; ALFF, Hannah Pereira. Direito à saúde coletiva na pandemia: reflexões sobre o papel do Judiciário em gestão de casos múltiplos em tempos de crise. In: SOARES, Carlos Henrique; NUNES, Leonardo Silva; ÁVILA, Luiz Augusto de Lima. Direitos em tempos de crise: soluções processuais para a tutela de direitos coletivos e individuais. Belo Horizonte: Dialética, 2020

[5] MADUREIRA, Claudio; ZANETI JR, Hermes. Controle jurisdicional das políticas públicas de saúde em tempos de pandemia: a doutrina dos processos estruturais como método e o dever processual de diálogo como limite. In: SOARES, Carlos Henrique; NUNES, Leonardo Silva; ÁVILA, Luiz Augusto de Lima. Direitos em tempos de crise: soluções processuais para a tutela de direitos coletivos e individuais. Belo Horizonte: Dialética, 2020, p. 411.

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