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18 ANOS DO JULGAMENTO DO HC 82.424-2/RS (CASO ELLWANGER)

OS VOTOS DOS MINISTROS CELSO DE MELLO E MARCO AURÉLIO

18 ANOS DO JULGAMENTO DO HC 82.424-2/RS (CASO ELLWANGER)
Marco Aurélio Mello, em sessão no Supremo Tribunal Federal — Foto: Nelson Jr. / SCO / STF

Há 18 anos, em 17 de setembro de 2003, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do HC 82.424-2/RS, conhecido como “Caso Ellwanger”, hard case [1] por muitos intitulado “o caso” da jurisprudência da Suprema Corte [2].

Em síntese, Siegfried Ellwanger foi denunciado como incurso no art. 20, caput, da Lei nº. 7.716/89, com a redação dada pela Lei nº. 8.081/90, pois, como escritor e sócio dirigente da Revisão Editora Ltda, de forma reiterada e sistemática, editou, distribuiu e comercializou ao público obras de conteúdo discriminatório contra o povo judeu, de sua autoria e da autoria de terceiros [3]. Sendo absolvido em primeira instância, foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que classificou o delito cometido como racismo. Inconformado, impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, o qual foi denegado, e, posteriormente, perante o Supremo Tribunal Federal, visando o afastamento do racismo e sua imprescritibilidade, para ser reconhecida a prescrição, sob o argumento de que os judeus não são raça, mas sim etnia, não podendo o incitamento contra o judaísmo ser considerado racismo.

A partir de tal argumentação, a Corte buscou delimitar os seguintes pontos: o conceito de racismo e seu alcance; o enquadramento do racismo na legislação infraconstitucional; a incidência da imprescritibilidade e da inafiançabilidade, conforme previstas na Constituição Federal (art. 5º, LXII); a tipicidade ou não da conduta; e a ocorrência de conflito entre princípios [4].

Iremos, aqui, proceder à análise dos votos dos Ministros Celso de Mello [5] e Marco Aurélio Mello [6], que de forma distinta julgaram o caso, o primeiro entendendo pela denegação da ordem, e o segundo pela sua concessão, por reconhecer a prescrição da pretensão punitiva.

O Ministro Celso de Mello inicia seu voto asseverando que a controvérsia consiste em saber se a prática do antissemitismo subsume-se ao crime de racismo e à cláusula de imprescritibilidade, consignando tratar-se de julgamento com inafastável valor simbólico, por se projetar na definição do princípio indisponível da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF). É possível dividir o voto nos seguintes tópicos: marcos temporais e direito/compromissos internacionais; conceito de racismo; cláusula constitucional de liberdade de expressão e conflito de princípios.

De início, o Ministro elenca alguns marcos temporais importantes relacionados ao tema em debate, como a chegada ao poder, na Alemanha, do Partido Nacional Socialista, em 30/01/1933, dando, por fim, destaque à promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 10/12/1948, a qual representou a consolidação e afirmação dos direitos humanos, bem como forjou as bases jurídicas e éticas de um novo modelo, assegurando às pessoas o direito de viver protegidas do temor.

Assim, o Ministro ressalta que o Estado deve concretizar os postulados da DUDH, e que a subscrição desta impõe ao Estado brasileiro, bem como ao STF, a execução dos compromissos instituídos em favor da defesa e proteção da dignidade de todas as pessoas, sendo o grande desafio da Suprema Corte extrair das declarações internacionais sua máxima eficácia.

Dito isto, passa o Ministro a tratar do conceito de racismo, afirmando que ele não se resume à biologia, possuindo projeção cultural e sociológica e sendo instrumento de controle ideológico. Neste ponto, citando o parecer do jurista Celso Lafer [7], que atuou no feito como amicus curiae, o Ministro aponta que reduzir o racismo ao conceito biológico representa uma seletividade, por limitar o bem jurídico protegido pelo direito brasileiro, o que não é aceitável como critério de interpretação dos direitos e garantias constitucionais, além de que uma interpretação restritiva de racismo, apenas pelo conceito biológico, torna-o crime impossível, em razão de inexistirem raças, conforme diz a ciência.

Postas tais premissas, o voto indica não ser possível invocar a cláusula constitucional da liberdade de expressão, pois a publicação extravasa os limites da indagação científica, indo ao nível do insulto e da intolerância, não merecendo, assim, a dignidade da proteção constitucional. Ademais, não pode a liberdade de expressão exteriorizar propósitos criminosos, já havendo a Suprema Corte decidido que não existem direitos e garantias de caráter absoluto, assegurando as limitações a coexistência das liberdades.

O Ministro destaca que a liberdade de expressão pode levar a conflitos entre valores essenciais, contudo, entende que, no caso, não há esse conflito, existindo, em verdade, norma constitucional que preserva a dignidade da pessoa humana e busca inibir comportamentos abusivos que disseminam o ódio, apresentando-se os postulados da igualdade e dignidade humana como limitações externas à livre expressão. Argumenta ainda que, havendo conflito entre princípios, a ponderação não deve causar o esvaziamento do conteúdo dos direitos fundamentais, além de que a existência de interesse público na revelação de ilícitos penais basta para autorizar o Estado a atuar na defesa de postulados essenciais, como a dignidade humana.

Desse modo, como a tese exposta no habeas corpus enfraquece a proteção do ordenamento aos grupos minoritários, especialmente os mais vulneráveis, não podendo ser aceita, o Ministro denegou a ordem, mantendo a condenação imposta pelo Tribunal gaúcho.

Passando, agora, ao voto do Ministro Marco Aurélio Mello, ele, após breve relato dos fatos e do andamento processual até a impetração do writ, começa destacando que o caso envolve um profundo problema de direito constitucional: o da eficácia dos direitos fundamentais e da ponderação de valores, existindo colisão entre os princípios da liberdade de expressão e da proteção à dignidade do povo judeu.

O voto é estruturado em seis tópicos: liberdade de expressão e Estado Democrático de Direito; colisão entre direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade; jurisprudência comparada quanto à liberdade de expressão; histórico do racismo das Constituições brasileiras; jurisprudência simbólica; imprescritibilidade e o sistema de direitos fundamentais.

De proêmio, o Ministro aduz que a eficácia plena dos direitos fundamentais é condição para a conservação da democracia, e que por meio do direito fundamental da liberdade de expressão é que se dá a participação democrática, possibilitando a exposição das diferentes opiniões. O Estado, portanto, é democrático quando tolera as diferentes opiniões do pensamento, especialmente as que o criticam, não existindo uma verdade absoluta que justifique a limitação à liberdade de expressão, sendo a forma/modo da expressão seu único limite.

O Ministro assevera que eventuais abusos da liberdade de expressão devem ser cabalmente demonstrados, não bastando expectativas abstratas. Desta feita, havendo colisão de princípios, deve-se proceder à ponderação sempre com base no caso concreto, e não de forma abstrata, verificando se a dignidade de alguém realmente está em perigo.

Quanto ao caso em julgamento, o Ministro entende ausentes dados concretos de que o paciente tenha incitado a prática do racismo, não havendo afirmação categórica da superioridade alemã. Assim, obtempera que a defesa de uma ideologia não é crime, e que não é com a proibição de divulgação das ideias que se combaterá o preconceito, devendo a circulação destas ser livre, com a sociedade formando suas conclusões.

Isto posto, e destacando que a sociedade brasileira não tem predisposição ao preconceito contra judeus, bem como que inexistem no Brasil os pressupostos sociais e culturais para tornar o livro perigoso contra judeus, o Ministro afirma que, em relação ao povo judeu, o livro sequer ensejou hipótese de dano real, tratando-se de perigo meramente aparente.

Em continuidade, o voto passa a aplicar o princípio da proporcionalidade para a realização da ponderação, analisando o acórdão do Tribunal gaúcho com base nos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade sentido estrito.

No que tange à adequação, o Ministro afirma que condenar o paciente é não o meio adequado para evitar a discriminação contra judeus, posto que a transmissão das ideias do paciente por meio dos livros não significa que os leitores irão concordar ou discriminar, além de que o preconceito só é punível quando posto em prática, gerando discriminação.

Quanto à necessidade, o Ministro indica que a medida não deve exceder os limites necessários para a conservação do objetivo, devendo ser escolhido o meio mais suave. In casu, não sendo possível uma solução menos grave, deve ser concedida a ordem, pois a restrição à liberdade de expressão não garantirá a dignidade do povo judeu.

Por último, a respeito da proporcionalidade, o voto aduz não ser o resultado proporcional ao meio empregado e à coação da medida, haja vista não existirem mínimos indícios de que o livro causará revolução na sociedade brasileira e não ser razoável responsabilizar o paciente por ideias e livros de terceiros, que ele editou, concluindo que a condenação não foi o meio mais adequado, necessário e razoável para a solução do caso.

Em seguida, o Ministro elenca jurisprudência de outros países relativa à liberdade de expressão, como o caso Lüth [8], na Alemanha, e faz um breve histórico da previsão do racismo nas Constituições brasileiras, dizendo que nem sempre elas trataram especificamente da discriminação pelo racismo, sendo a de 1988 a primeira que tornou o racismo imprescritível (art. 5º, XLII).

Cuidando, agora, da ideia de jurisprudência simbólica, o voto afirma que o Supremo a pratica quando decide pela limitação da liberdade de expressão para atender ao politicamente correto, agindo como representante do Estado para garantir a punição e, de forma simbólica, dar resposta imediata ao problema. O Ministro também traz o conceito de jurisprudência-álibi, como aparência de solução dos problemas sociais, mostrando as boas intenções do julgador, e conclui dizendo que a própria imprescritibilidade do racismo é uma manifestação de simbolismo sem precedentes no mundo.

Versando, por fim, acerca da imprescritibilidade e o sistema dos direitos fundamentais, sustenta que, como o Estado deve respeito incondicional aos direitos fundamentais e a Suprema Corte deve garantir sua máxima eficácia, não se pode interpretar de forma abrangente preceitos que diminuem a eficácia destes direitos, devendo as exceções ao sistema de direitos fundamentais ser interpretadas de forma estrita. Sendo uma destas exceções a imprescritibilidade do racismo, é necessário tomar as referências iniciais da norma, e, de acordo com os anais da Constituinte, a imprescritibilidade é voltada ao preconceito contra o negro, não existindo qualquer menção ao racismo contra judeus, posto que a Lei Maior visa tratar de problemas genuinamente brasileiros.

O Ministro ainda indica que somente os crimes considerados gravíssimos são imprescritíveis, nunca se aceitando a imprescritibilidade dos crimes comuns, motivo pelo qual a interpretação da norma de imprescritibilidade deve ser a mais limitada, só incidindo no caso de discriminação contra negros. Caso contrário, existirá um tipo aberto imprescritível, que não se coaduna com o regime democrático, e se deixará ao legislador ordinário a delimitação da norma constitucional do racismo, acarretando verdadeira inversão.

Portanto, tratando o caso de simples discriminação contra judeus, e não racismo, não incide a imprescritibilidade, concedendo-se a ordem para afastar o crime de racismo e reconhecer a prescrição da pretensão punitiva.

Observa-se, por todo o exposto, as diversas possibilidades de análise acerca dos limites da liberdade de expressão, surgindo a efeméride dos 18 anos deste julgamento como possibilidade de reflexão a respeito de tão relevante (e conturbado) tema, bem como de estudo quanto à aplicação jurisdicional dos direitos humanos.

[1] Casos difíceis (hard cases) seriam casos judiciais para os quais não existe uma lei específica, ou existe mais de uma solução possível, especialmente devido às dificuldades que lhes são inerentes, que podem estar relacionadas a problemas no sistema jurídico, a regras inconsistentes ou a problemas empíricos ou semânticos da norma (OLIVEIRA, Y. W. O STF e o “caso Ellwanger”: a interferência dos fatores extralegais no processo de delimitação das decisões judiciais, p. 49. Revista Brasileira de Direito, v. 11, nº. 1, jan./jun., p. 46-56, 2015. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/757. Acesso em: 12 out. 2021).

[2] Celso Lafer, que, na qualidade de amicus curiae, apresentou parecer no julgamento do HC 82.424-2/RS, destacou em artigo publicado na Folha de São Paulo: “O caso Ellwanger é um marco na jurisprudência dos direitos humanos, cuja prevalência na Constituição de 1988 é uma das notas identificadoras do Estado democrático de Direito” (LAFER, C. O STF e o racismo: o caso Ellwanger. Folha de São Paulo. 30 mar. 2004. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz3003200409.htm. Acesso em: 12 out. 2021).

[3] O primeiro livro publicado por Ellwanger foi: Holocausto – Judeu ou Alemão?: Nos Bastidores da Mentira do Século, obra na qual alegava que o holocausto judeu seria forjado, não existindo câmaras de gás nos campos de concentração, além de que eles não seriam campos de extermínio, mas centros de trabalho forçado. Com a grande repercussão do livro, fundou a Revisão Editora Ltda, dedicada a publicar e revender livros associados ao negacionismo e ao antissemitismo, como: Acabou o gás!: o fim de um mito; Hitler: culpado ou inocente?; e A implosão da mentira do século.

[4] OLIVEIRA, Y. W. Op. cit., p. 52.

[5] Antecipação de voto em 09/04/2003, posteriormente confirmado em 17/09/2003.

[6] Voto-vista em 17/09/2003.

[7] Referido parecer pode ser consultado, na íntegra, em: https://www2.sena­do.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/948/R162-08.pdf?sequence=4&isAllowed=y. Acesso em: 12/10/2021.

[8] Julgado em 15 de janeiro de 1958 pelo Tribunal Constitucional Alemão, e por muitos considerado a mais importante decisão de toda a sua jurisprudência sobre direitos fundamentais, tratou de boicote promovido contra cineasta anteriormente ligado ao nazismo. A Corte, reformando decisão de primeira instância que determinou a paralização imediata do movimento de boicote, decidiu que é essencial a um Estado democrático e livre que permita o conflito de opiniões, como base da própria liberdade.

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Autor

  • Mestrando no Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Campinas, vinculado à linha de pesquisa “Direitos Humanos e Políticas Públicas”. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC São Paulo. Advogado.

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