- Considerações iniciais
A relação comumente feita entre poderes instrutórios e «justiça» vem gravada pelo indébito metaético que macula a doutrina do processo justo[1], revelando um particular atraso do pensamento processualista[2]. Além disso, parece desconsiderar quantas vezes a invocação da «justiça» serviu para escamotear o arbítrio[3]. Tentarei demonstrar como a «justiça» pode ser invocada contra as garantias processuais, de maneira escandalosa ou insidiosa, de maneira pontual ou geral.
- Descrição do caso
Começo com a análise de um episódio protagonizado como magistrado e relatado como processualista por José Carlos Barbosa Moreira[4] para defender os poderes instrutórios do juiz como fundamental à realização da «justiça».
Segundo o autor, “Menores, no sistema do CPC, não podem ser ouvidos como testemunhas; mas todos nós já ouvimos menores em determinados processos. Eu já ouvi, e orgulho-me de tê-lo feito, mesmo antes do Estatuto da Criança e do Adolescente. Lembro-me de um caso em que o fato de ter chamado os menores e de tê-los ouvido me proporcionou uma das maiores satisfações que tive durante todo o período do exercício da judicatura. Tratava-se de saber se esses menores, que estavam confiados à guarda de um parente, depois da separação dos pais, deviam passar as férias, ou a maior parte delas, com o pai ou com a avó materna. A causa chegou-me como relator já em grau de embargos infringentes. E eu, sinceramente, não conseguia saber qual era a melhor solução; só com a leitura dos autos não era possível. E decidi-me – contrariando um pouco a praxe – a chamar os menores e ouvi-los. Achei que a melhor fonte eram os próprios menores. Eram dois adolescentes; afinal, tenho quatro filhos, e não é uma coisa inédita para mim conversar com adolescentes. Chamei-os aqui, levei-os primeiro ao bar, dei-lhes sorvete, mostrei-lhes a paisagem, a ponte, para, ganhar confiança. Depois, falei sobre futebol… Levei uma tarde, mas valeu a pena, porque, quando eles estavam já mais descontraídos, o que disseram me deu a convicção sólida de que a avó era uma autêntica ‘megera’. Eles preferiam tudo a passar as férias em casa dela. Os menores não eram partes no feito, nem foram ouvidos como testemunhas; mas foi uma oportunidade magnífica para mim de obter informações imprescindíveis para que se pudesse dar uma solução justa. No dia da sessão do Grupo, evidentemente, expus o que tinha ouvido dos menores, e a solução foi reduzir ao mínimo possível a permanência deles em casa da ‘megera’”.
E justifica assim a postura: “precisamos ter a noção de que os princípios processuais não são absolutos. Nenhum princípio, neste plano, eu diria, é absoluto. Estamos sempre diante de duas solicitações que por vezes nos puxam uma para cada lado, e ameaçam despedaçar-nos. De um lado, sabemos que é preciso assegurar essa garantia; é preciso que as partes tenham participação efetiva na atividade de instrução. Por outro lado, sabemos que às vezes, em determinadas circunstâncias, a presença da parte atrapalha, prejudica. Se eu fosse ouvir aqueles dois rapazinhos na presença da avó, eles nunca me revelariam o que revelaram, de modo que eu não teria a mesma possibilidade de esclarecer os meus colegas no instante em que o feito chegou a julgamento. Vejo-me entre a cruz e a caldeirinha”.
- Avaliação do caso
Visto pelas categorias da teoria do fato jurídico, especificamente pelo prisma do plano da eficácia, o contraditório relação jurídica[5]; dele emanam direitos para as partes e os correlatos deveres para o juiz: as partes têm o direito de informação e o juiz, o correlato dever de informar, o que alcança a proibição de surpreendê-las; as partes têm o direito de reação e o juiz, o correlato dever de considerar clara, coerente e completamente o seu labor argumentativo, indicando se e como influenciaram no seu convencimento[6].
Se o contraditório garante às partes que exerçam influência sobre os rumos do processo e do provimento[7] e se as provas são o meio, por excelência, de influenciar na decisão sobre os fatos, então o contraditório é o fundamento constitucional do direito à prova, que se desdobra nestas situações jurídicas ativas: requerer, participar da produção, se manifestar sobre a prova produzida e ter essa manifestação considerada pelo juiz[8].
Pelo que se infere do relato, todas as situações jurídicas ativas decorrentes do contraditório e do direito à prova foram suprimidas: as partes não foram informadas da produção da prova, não puderam participar da sua produção, nem se manifestar sobre a prova produzida. Iniciativa, produção e valoração da prova foram realizadas integral e exclusivamente pelo juiz.
Instigado por uma dúvida cuja origem não é jamais informada, o decisor considerou imprescindível realizar o expediente na surdina, sonegando a participação daqueles que seriam diretamente afetados pela decisão – com particular prejuízo para a avó, que se viu privada do convívio dos netos durante as férias escolares e ainda foi tachada de “megera”, tudo sem o direito de se defender. Tudo recebido pelos pares com desassombro.
Paira o mais completo mistério: não se sabe como os menores foram chamados à presença do julgador, onde se encontraram, quanto tempo permaneceram juntos, qual foi a abordagem empregada, as perguntas formuladas e as respostas fornecidas. Tudo se resolve na confiança do sentimento de justiça do seu protagonista.
É a encarnação do juiz ideal do modelo inquisitório. Um ser pressupostamente magnânimo que cumula todas as competências necessárias à máxima exploração das suas virtudes inatas, podendo, para tanto, agir em conjunto com as partes e até em substituição a ela quanto este for o seu feeling.
A atuação pode ter proporcionado ao magistrado uma das maiores satisfações de toda a sua experiência judicante, acalentando seus mais profundos sentimentos de justiça e verdadeiramente conduzido à melhor solução para o caso – o que ninguém poderá apurar, contudo –, mas representa uma negação completa do contraditório, da impartialidade e da imparcialidade. A total informalidade da investida confere ao seu produto o status de conhecimento privado do juiz, que não pode ser utilizado na decisão. Tudo em nome da «justiça».
- As paixões do juiz e as garantias processuais
Certamente o episódio foi conduzido pelos mais nobres sentimentos, mas lembrar que para o julgador “há extrema necessidade de reserva de reflexão, para que não exerça a prestação jurisdicional de maneira apaixonada”[9].
Não por acaso, os ordenamentos democráticos oferecem aos destinatários dos provimentos jurisdicionais o dever de imparcialidade do juiz, compreendido como esforço por objetividade[10], de retidão no processo formativo do convencimento[11] como ausência de beneficiamento ou perseguição a qualquer dos envolvidos, e a possibilidade de participarem, em contraditório, dos atos que preparam o julgamento, inclusive da produção e valoração das provas necessárias para a decisão sobre os fatos. Definitivamente, “ninguna prueba puede ser tomada como verdadera, sin que haya la verificación de su legalidade, de la producción dentro del plazo e del contradictório por las partes”[12]. Tudo gritantemente sonegado no caso em apreço.
Não se diga que a crítica decorre da adesão, por mim, ao garantismo processual. É assente na doutrina favorável aos poderes instrutórios que um dos limites ao seu exercício é o respeito, a todo momento, da garantia do contraditório[13], inclusive na fase de admissão da prova, permitindo que as partes possam influenciar na avaliação da sua pertinência e necessidade[14]. São raros os que concebem autorizar o juiz, “quando assim recomendar o seu bom senso”, a exercer os poderes instrutórios à revelia da participação das partes[15].
Vem de um dos mais tenazes defensores dos poderes instrutórios do juiz a lição de que “En ningún caso se prevé que el juez se transforme en un inquisidor en el que se concentren todos los poderes de instrucción y de descubrimiento de la verdad, comprimiendo o incluso anulando los poderes probatórios de las partes”[16]. De fato, se as garantias processuais existem porque o ser humano tende ao passional, ali onde quem decide se deixa conter por elas, temos um juiz; onde não, um inquisidor.
- Crítica anacrônica?
Trabalho recente dedicado à defesa dos poderes instrutórios na fase recursal menciona o episódio sem maior viés crítico, ressalvando apenas que, “na atualidade, o seu exercício exigiria a adoção de diligências consubstanciadas nas premissas dos artigos 9º e 10º (sic) do CPC/15”[17].
É inegável que nossa visão do contraditório como garantia de influência e não surpresa está muito mais madura hoje do que em fins dos anos 1980, quando ocorreu o episódio, mas a ressalva temporal é injustificável. Não se pode atribuir ao CPC uma novidade que não lhe cabe – seus arts. 9º e 10 explicitam conteúdo exigível, no mínimo, desde a CF. Ademais, ela desconsidera o que o autor ensinava já àquele tempo.
Em texto publicado em 1985, advogando a causa da “socialização do processo civil”, em geral, e da “ativação probatória” do juiz, em particular, e repelindo “a extravagante ideia” de que o processo “social” promove a entronização do juiz opressor e contraposto às partes, disse o autor: “Em matéria de prova, enfim, deveria ser claro que nenhuma intensificação da atividade oficial, por mais ‘ousada’ que se mostre, tornará dispensável, ou mesmo secundária, a iniciativa dos litigantes. De maneira alguma se trata de cerceá-la, como dão a impressão de temer alguns intransigentes críticos do processo ‘inquisitório’ – outra denominação bastante equívoca. O papel do juiz e o das partes são aqui complementares; absurdo concebê-las como reciprocamente excludentes. E não custa reconhecer que, de fato, ao menos no comum dos casos, por óbvias razões, dos próprios litigantes é que se obterá, com toda a probabilidade, aporte mais substancioso. Nesse ponto, como nos restantes, não há porque vincular a inspiração ‘social’ no processo à extravagante idéia – que, a bem da verdade, ninguém propugna, embora alguns pareçam enxergar nela fantasma a reclamar exorcismo – de uma ‘entronização’ do juiz como suserano imposto à vassalagem das partes. Essa é uma caricatura que não merece defesa, nem aliás a encontra, hoje, em qualquer setor respeitável da doutrina processual; por conseguinte, tampouco merece ataques, e surpreende que às vezes se perca tempo em desferi-los. O lema do processo ‘social’ não é o da contraposição entre juiz e partes, e menos ainda o da opressão destas por aquele; apenas pode ser o da colaboração entre um e outras”[18].
Com Barbosa Moreira, contra Barbosa Moreira: as lições supratranscritas são frontalmente contrariadas tanto pela prática judicante da oitiva-surpresa dos menores quanto pela lição doutrinária que intentou justificá-la.
O proceder é raro e indefensável – qualquer obra favorável aos poderes instrutórios fornece subsídios para reprova-lo. Mas não é estéril mencioná-lo, seja por ser ainda hoje referido sem a crítica merecida[19], seja por demonstrar que até nas mentes mais ilustradas a persecução da «justiça» pode inocular transgressões às garantias processuais e e propiciar o arbítrio.
- Por trás de tudo, a parcialidade positiva do juiz
Há uma intuição que dificilmente seria negada: existem competências processuais privativas das partes e competências processuais privativas do juiz.
Disso deve(ria) se seguir o esforço para demarcar tais espaços, impedindo o exercício de competências judicantes pelas partes e de competências postulantes pelo juiz. Não é o que ocorre. O problema dessa leniência, é claro, não é o risco de um completo baralhamento das funções processuais das partes e do juiz. As partes jamais exercerão competências judicantes. O risco é de mão única: o juiz pode acabar exercendo competências postulantes em conjunto com as partes – e em casos extremos, como o analisado acima, até em substituição a elas.
A doutrina do processo justo não desafia o problema. Quando pensa na divisão de trabalho entre as partes e o juiz, o faz sob a dimensão argumentativo-discursiva do contraditório (seu conteúdo), ignorando sua dimensão relacional (definidor das competências relativas às situações jurídicas dele derivadas). Tudo se passa como se a ampla participação das partes e o correlato dever judicial de consideração suplantasse a investigação prévia sobre quem tem dada competência processual. No fundo, considera-se que permitir o exercício de certas funções de parte pelo juiz, ainda que em conjunto com elas, constitui exigência de «justiça», «igualdade material» e «verdade». Daí indagar-se muito pouco sobre a constitucionalidade das competências judiciais e quase exclusivamente sobre o seu modo de exercício.
Talvez essa doutrina fizesse (e se saísse) melhor se seguisse os passos de Artur César de Souza: reconhecer explicitamente que a missão sócio-equalizante imposta pelos laivos do Estado Social conduz à aceitação da parcialidade positiva do juiz, tanto no exercício de funções processuais quanto na interpretação jurídica[20] – mesmo que não vivamos sob o Estado Social e que isso negue a imparcialidade.
Grosso modo, o autor argumenta que a imparcialidade tem uma função negativa e uma função positiva. A função negativa consiste na proibição de que os juízes pendam para determinada parte por interesse pessoal ou qualquer outro fator discriminatório. A função positiva informa materialmente o agir do magistrado, impõe que ele lance mão dos meios necessários à construção de uma sociedade mais justa e solidária, com erradicação da pobreza e das desigualdades sociais, econômicas, culturais etc.
O Judiciário, prossegue, não está à margem da estruturação política imposta pelo art. 3º, CF, devendo atuar para realizar os fins ali arrolados. A imparcialidade prescreve o modo de exercício da função jurisdicional e o juiz deve atuar para assegurar que todos os sujeitos processuais tenham iguais perspectivas de levar adiante suas pretensões. Conjecturas estruturais que impedem os homens de serem iguais entre si devem ser superadas. Visualizar o homem em sua concretude exige, além do desenvolvimento de um procedimento meramente formal, o prestígio de uma ética material sensível às diferenças empíricas as partes.
Trata-se de humanizar o processo, de personalizá-lo; de “socializá-lo com os ares generosos da solidariedade”. O ser humano e sua produção, reprodução e desenvolvimento são referências para o exercício da atividade jurisdicional, não estando as questões processuais enclausuradas apenas no âmbito jurídico e dogmático da relação jurídica processual. O processo justo reclama “um sopro de vida no corpo inanimado da atividade jurisdicional, mediante a observância dos princípios constitucionais e dos valores internos e externos ao sistema jurídico, a fim de que não sejam apenas formalmente vivenciados, mas, principalmente, materialmente garantidos. Este sopro de vida na razão de ser do processo deve ser dado pelo princípio da ‘parcialidade positiva’ do juiz, que humanizará a relação jurídica processual penal ou civil por meio da concepção filosófica da ‘racionalidade do outro’ e concretamente estabelecerá as garantias materiais e substanciais dos princípios e direitos fundamentais previstos na Constituição”[21].
Em suma, a “postulação humanitária de uma nova leitura do princípio da imparcialidade reclama o efetivo reconhecimento das diferenças existentes entre as pessoas, para que se possa vislumbrar uma decisão final équa e justa”[22].
Está claro: o juiz pode ser parcial para realizar a «justiça», a «verdade» e a «igualdade material». Tirante duas pequenas vacilações – a impossível convivência das autoexcludentes funções positivas e negativa da imparcialidade e a surpreendentemente acanhada afirmação de que se está promovendo a releitura da imparcialidade, quando seria mais consentâneo com o conjunto da obra afirmar a sua substituição pela parcialidade positiva – o autor não nos cansa com a enfadonha tentativa de compatibilizar a imparcialidade e o engajamento do juiz com dado resultado. Invocando uma atuação jurisdicional orientada por “valores externos ao sistema jurídico” segundo a “concepção filosófica da racionalidade do outro”, deixa claro que a «verdadeira justiça» é sempre parcialíssima[23]. De fato, se o respeito à lei lato sensu é uma exigência mínima da imparcialidade[24], então o juiz que não se deixa conter por ela é inequivocamente parcial.
Estou convencido de que José Carlos Barbosa Moreira pensava como Artur César de Souza. Não pelo episódio aqui narrado nem por sua afirmação de que, engajado na busca da «verdade» para fazer «justiça», recebe a acusação de parcialidade antes como elogio do que como censura[25]. O fundamental é que seus argumentos pelo empoderamento judicial são essencialmente os mesmos do professor paranaense – com a diferença de que apenas o segundo é explícito na defesa da parcialidade positiva, um elogiável exercício de honestidade intelectual. Ambos têm uma visão idealizada do juiz e ancoram o exercício da jurisdição numa ética que substitui a imparcialidade pela parcialidade positiva.
- Considerações finais
A mobilização direta da «justiça»[26] – que tem como produtos-limite teses como a da parcialidade positiva do juiz – goza de imensas vantagens: arrancando de um modelo ideal, deve coerência apenas a si mesma, não a dado ordenamento jurídico; agitando-se no plano da afecção da linguagem, persegue mais a comoção retórica do que o convencimento científico-dogmático. Quem contrasta esse tipo de discurso por pretender operar no interior de dado ordenamento jurídico tem como missão primordial demonstrar os distintos jogos de linguagem em curso – política lá; dogmática aqui. Do contrário, presta o desserviço de alimentar falsos debates – não há debate quando os interlocutores não estão falando das mesmas coisas – em vez de contribuir para cessar o ruído.
É necessário enfrentar todas as violações das garantias processuais levadas a efeito sob o manto da «justiça». As arreganhadas, porque flagrantes, são de fácil identificação e constrangimento. As especiosas, porque intrinsecamente vinculadas a uma linguagem teórica astuta que dissolve os já porosos limites entre o político e o jurídico, exigem maior esforço argumentativo. Tanto lá como cá, porém, cuida-se de informar quais garantias processuais nós realmente reconhecemos e em que termos – para todas as pessoas, inclusive as megeras.
*O texto é uma versão adaptada de: SOUSA, Diego Crevelin de. Impartialidade. A divisão funcional de trabalho entre as partes e o juiz a partir do contraditório. Belo Horizonte: Letramento / Casa do Direito, 2021, págs. 193-202.
[1] Sobre o tema, ver: DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Desafios metaéticos à doutrina do processo justo. Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, Vol. 308, p. 17-31, Out./2020.
[2] “apresentar a justiça como finalidade do processo é indício de um peculiar atraso no pensamento processualista. Se atribuirmos ao termo ‘justiça’ um sentido intra-sistemático (…) temos uma afirmação circular. (…) Se, ao contrário, atribuirmos ao termo ‘justiça’ um significado independente do direito positivo (…) esbarramos na notória e irredutível discordância das concepções sobre o justo. Séculos de reflexão sobre a desmistificação das ideologias jurídicas e sociais deixaram claro que a justiça, por mais que esteja presente nos debates especializados e nas representações populares como sentimento, sonho ou até mesmo reivindicação antropologicamente arraigada, não pode ser definida de maneira objetiva. Devemos, assim, abandonar a referência à justiça que constitui um complemento ideológico do funcionamento dos mecanismos estatais” (DIMOULIS, Dimitri. LUNARDI, Soraya Gasparetto. A verdade como objetivo do devido processo legal. In: Teoria do Processo. Panorama doutrinário mundial. V. 2. Coord. Fredie Didier Jr. Salvador: JusPodivm, 2010, págs. 816-817).
[3] “El derecho justo existe solo em comunidades de fe de las cuales se participa voluntariamente u obligado por la fuerza, según lo ha enseñado la experiencia y esta es también una doctrina que se deriva del Estado nacionalsocialista y del Estado del Partido Unificado de Alemania” (RÜTHERS, Bernd. La Revolución Secreta. Del Estado de derecho al Estado judicial. Un ensaio sobre Constitución y método. Madrid: Marcial Pons, 2020, p. 49). Indicando a invocação da «justiça» para afastar o direito positivo de maneira frouxa: “Toda menção a um dos princípios ‘superiores’ ao direito escrito leva – quando a Justiça os invoca – à suspensão das disposições normativas individuais e a se decidir o caso concreto de forma inusitada” (MAUS, Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade: o papel da atividade jurisdicional na “sociedade órfã”. Novos Estudos CEBRAP. n. 58, 2000, p. 189). Identicamente: “Permitir ao juiz decidir desta ou daquela maneira porque se pautou no valor justiça, sem que exista por detrás dessa definição um critério consensual ou, ao menos, amplamente difundido, é dar o aval para fazê-lo sem uma justificação propriamente dita, passível de exame, crítica e validação por parte dos jurisdicionados. O enunciado ‘decido para atender a um ideal de justiça’, não obstante possa se estruturar em quantidade maior ou menor de palavras, não diz absolutamente nada. Poderia, inclusive, ser sintetizado na fórmula ‘decido porque quero’. (SANTOS, Maira Bianca Scavuzzi Albuquerque dos. O Déficit Democrático das Decisões Fundadas no Critério da Justiça: a justiça como subterfúgio performático para o ativismo. Dissertação (mestrado em Direito). 190f. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017, p. 132-133). No âmbito específico do publicismo processual: “o publicismo autoritário foi fortemente influenciado pelos ideais socialistas de justiça material e pela concepção de que o processo seria instrumento de promoção social e redução das desigualdades. (…) Essa concepção notabilizou-se na obra de Anton Menger e de outros adeptos do chamado “socialismo jurídico”, que pregavam o dever dos juízes de educar e instruir os jurisdicionados, e foi positivada no Código austríaco de 1895 (§ 432) por Franz Klein, discípulo de Menger. A noção de que o processo deveria proporcionar justiça foi transmitida ao longo das gerações e tornou-se muito comum afirmar, contemporaneamente, que o processo seria instrumento de realização da justiça. (…) “o mito de que o processo justo é o processo que produz decisões justas é perigosíssimo, pois valida comportamentos autoritários e despóticos em nome de ideias não só equivocadas, mas vazias de conteúdo” (LUCCA, Rodrigo Ramina de. Disponibilidade Processual. A liberdade das partes no processo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, págs. 137-138).
[4] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Provas Atípicas. Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, V. 76, p. 114-126, out./dez. 1994.
[5] Trato com mais vagar do contraditório como relação jurídica em: SOUSA, Diego Crevelin de. Impartialidade…, p. 111 e ss.
[6] Sobre os requisitos mínimos do dever de fundamentação, por todos: LUCCA, Rodrigo Ramina de. A Motivação das Decisões Judiciais Civis em um Estado de Direito: necessária proteção da segurança jurídica. Dissertação (mestrado em Direito). 371f. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 192 e ss.
[7] Para o contraditório como garantia de informação, reação, influência e não surpresa, por todos: NUNES, Dierle José Coelho. Comparticipação e Policentrismo: horizontes para a democratização processual civil. Tese (doutorado em Direito). 219f. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008, p. 171 e ss.
[8] DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. V. 2. 10 ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 41 e ss.
[9] SAMPAIO, Denis. A verdade no Processo Penal. A permanência do sistema inquisitorial através do discurso sobre a verdade real. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 161.
[10] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Imparcialidade como esforço. In: Processo e Garantia. V. I. Londrina: Thoth, 2021, p. 233 e ss.
[11] GONÇALVES, Marcelo Barbi. Teoria Geral da Jurisdição. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 324.
[12] SOARES, Carlos Henrique. Reflexiones filosóficas sobre la prueba y verdad en el proceso democrático. In: Direito Probatório. Temas Atuais. Orgs. Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, Carlos Henrique Soares, Mónica Bustamante Rúa, Liliana Damaris Pabón Giraldo, Francisco Rabelo Dourado de Andrade. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016, p. 61. No mesmo sentido, advertindo que a verdade no processo só pode ser encontrada sob o contraditório: ROBERTO, Welton. Paridade de Armas no Processo Penal Brasileiro. Uma concepção do justo processo. Tese (doutorado em Direito). Data da Defesa: 07/03/2012. 332f. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012, p. 89.
[13] De acordo com JUNOY, Joan Picó i. El Juez y la Prueba. Estudio de la errónea recepción del brocardo iudex iudicare debet secundum allegata et probata, non secundum conscientian y su repercusión actual. Barcelona: J M. Bosch Editor, 2007, págs. 117-118, há três limites relevantes para as iniciativas probatórias do juiz: (i) a prova produzida pelo juiz deve, necessariamente, limitar-se aos fatos controvertidos ou discutidos pelas partes, fundamental para respeitar o princípio dispositivo; (ii) as fontes de prova sobre as quais serão exercidos os poderes instrutórios devem, necessariamente, constar previamente no processo, fundamental para impedir a atuação inquisitória, preservando a imparcialidade e a proibição de decidir com base no conhecimento privado; e (iii) os litigantes devem ter assegurado o contraditório durante todo o desenvolvimento da prova.
[14] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e Convicção. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p.100. Defendendo o direito de participar das fases de produção e valoração: DIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. V. 2. 11 ed. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 82.
[15] Como defende, porém: BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. 7 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 171.
[16] TARUFFO, Michele. Simplemente la Verdad. El juez y la construción de los hechos. Trd. Daniela Accatino Scagliotti. Madrid: Marcial Pons, 2010, p. 199.
[17] DIAS, Luciano Souto. O Poder Instrutório do Julgador na Fase Recursal do Processo Civil em Busca da Verdade Provável. Dissertação (mestrado em Direito). Data da defesa: 16/03/2017. 261f. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, p. 157.
[18] MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Função Social do Processo Civil Moderno e o Papel do Juiz e das Partes na Direção e na Instrução do Processo. Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, vol. 37, p. 140-150, jan./mar. 1985.
[19] Ênfase que se justifica porque ainda hoje há quem refira o episódio sem qualquer ressalva crítica, como se vê em: DIDIER JR., Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. V. 3. 13 ed. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 47. É provável que os autores discordem do proceder tal como levado a efeito, mas valeria uma nota nesse sentido.
[20] SOUZA, Artur César de. A Parcialidade Positiva do Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, especialmente os capítulos III e IV.
[21] SOUZA, Artur César de. A Parcialidade…, págs. 224-225.
[22] SOUZA, Artur César de. A Parcialidade…, págs. 232-236.
[23] SOUZA, Artur César de. A Parcialidade…, p. 236. O argumento se escuda em Comparato, que diz: “Durante séculos, no entanto, a justiça, virtude cardeal dos profissionais do direito, foi concebida e analisada more geometrico, como puro ente de razão, sem a menor ligação com a sensibilidade valorativa. (…) A verdadeira justiça, muito ao contrário, é sempre parcialíssima. Ela não se coaduna com eqüidistâncias formais nem se contenta com equilíbrios de circunstância. (…) Não é ocioso, de resto, lembrar que a solidariedade – o valor que inspirou a última geração dos direitos humanos, no decorrer deste século – foi corretamente denominada fraternidade pelos revolucionários de 1789. Mas, obviamente, essa sintonia com os grandes valores sociais supõe, de parte dos que nos governam, uma dupla sensibilidade ética. De um lado, a compreensão dos limites essenciais da condição humana, na firme rejeição daquela hubris, ou ausência de medida, que a sabedoria grega sempre considerou como a matriz da tragédia. De outro lado, um sentimento de compaixão universal, a simpatia na exata acepção etimológica da palavra, ou seja, a capacidade de sofrer com os fracos, os pobres e os humilhados do mundo inteiro”. (COMPARATO, Fábio Konder. O papel do jurista num mundo em crise de valores. Revista dos Tribunais Online, Revista dos Tribunais, vol. 715, p. 379-385, mai./1995).
[24] Corretamente, afirma-se que “a imparcialidade está para o juiz assim como a publicidade está para a lei. Não sem motivo, juízes parciais e leis secretas são monstros ético-jurídicos”. (COSTA, Eduardo José da Fonseca. Algumas considerações sobre as iniciativas judiciais probatórias. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Belo Horizonte, ano 23, n. 90, p. 153-173, abr./jun. 2015. p. 157). No mesmo sentido: FAZZALARI, Elio. La imparzialità del giudice. Rivista di Diritto Processuale. Padova: Cedam, n 2º, 1972, p. 196; BARZOTTO, Luis Fernando. Teoria do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 29.
[25] “Em substanciosa monografia alemã depara-se aguda crítica à equiparação que às vezes se faz entre ‘imparcialidade’ e ‘neutralidade’. Esta palavra, sustenta o autor, na medida em que sugere, para o juiz, uma abstenção de intervir (Nicht-Intervention”), um distanciamento em relação ao litígio (“Vom-Konflikt-Fernblieben”), expressa justamente o contrário do que afinal dele se espera. Peço licença para dizer que também penso assim. E atrevo-me a acrescentar: tivesse algum dia de retornar ao exercício da judicatura, voltaria, com absoluta tranqüilidade, a visitar, em caso análogo, por minha própria iniciativa, o prédio onde se houvesse realizado a obra, desde que não me satisfizesse, para formar convicção segura, com as peças já constantes dos autos. Tenho a certeza de que não sentiria comprometida, ou sequer ameaçada, como não senti daquela vez, a minha imparcialidade. E, se alguém objetasse que valer-me do resultado da inspeção pessoal significaria, inevitavelmente, beneficiar uma das partes, afirmo com toda a sinceridade, e sem falsa modéstia, que tomaria o reparo antes como elogio do que como censura…” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Reflexões sobre a imparcialidade do juiz. Temas de Direito Processual. Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 30).
[26] Este texto critica a invocação superficial da «justiça», às críticas ingênuas ao formalismo jurídico, ao respeito à lei e à segurança jurídica, o que não se confunde com o jusnaturalismo, incomparavelmente mais sofisticado e interessante. Ilustrativamente, veja-se o que dizem sobre o formalismo jurídico que: “a) A opção pelo formalismo (norma, sistema, legalidade) está relacionada à liberdade individual, igualdade perante a lei e segurança jurídica; b) A opção pelo antiformalismo (políticas públicas, ideologia, princípios materiais) está vinculada à instrumentalização da política do direito (direito social), à imposição da ideologia de um setor dos juristas à sociedade (pensamento jurídico ideológico) e à tutela dos cidadãos por parte de um Judiciário paternalista (justiça do cádi)” (BARZOTTO, Luis Fernando. Teoria do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 101). Sobre a postura do juiz na interpretação do direito, defendem que a moralidade interna do direito “requiere que haya leyes, que sean conocidas, y que sean observadas en la práctica por los encargados de su administración”, de modo que em face dos problemas que podem surgir para o juiz ao interpretar uma lei, “Hasta donde llegan los fines morales de la ley escrita, es parte de la índole de su oficio que el juez permanezca, en cuanto su capacidad humana lo permita, neutral entre las dos posiciones morales que pueden haberse tomado en la ley” (FULLER, Lon L. La Moral del Derecho. México D. F.: Editorial F. Trillas S.A., 1997, págs. 174 e 146-147). Portanto, “pode acontecer que a interpretação juridicamente mais adequada seja contrária aos seus valores morais particulares, pois sua posição de juiz faz dele guardião da lei e de sua moralidade interna, não um tirano togado que impõe a seus concidadãos a sua concepção moral” (BARZOTTO, Luis Fernando. Teoria…, p. 60). Isso basta para compreender que nos jusnaturalistas a tese da conexão conceitual entre direito e moral – tão clara, v. g., na fórmula de Radbruch, segundo a qual «lei extremamente injusta não é lei» – não serve para justificar que o juiz deixe de aplicar a lei que contraria os seus valores pessoais. Aliás, a questão das leis extremamente injustas não tem sequer centralidade nas cogitações jusnaturalistas, como afirma o seu maior nome na contemporaneidade: “O grande esforço feito em todos os capítulos anteriores talvez tenha convencido o leitor de que uma teoria da lei natural não precisa ter como sua principal preocupação, quer teórica quer pedagógica, a afirmação de que ‘leis injustas não são lei’. De fato, não sei de qualquer teoria da lei natural na qual essa afirmação, ou algo parecido, seja mais do que um teorema subordinado” (FINNIS, John. Lei Natural e Direitos Naturais. Trad. Leila Mendes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 337). Portanto, a invocação da fórmula fica reservada a situações excepcionalíssimas, como no contexto da justiça de transição (FONTES, Paulo Gustavo Guedes. O Manual Definitivo para Entender a Filosofia do Direito. 2 ed. Amazon, Kindle Edition). Em suma, a tradição bimilenar da Lei Natural, que condiciona a legitimidade do Estado e do direito à realização do bem comum está longe de amparar o idealismo judicial. A postura aqui criticada tem muito mais relação com o neoconstitucionalismo, useiro e vezeiro na romantização do direito dos juízes. A propósito, em tom crítico, ver: FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Neoconstitucionalismo e verdade. Limites democráticos da função jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, passim; RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, passim; GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O Neoconstitucionalismo e o Fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2014, passim; SANTOS, Bruno Aguiar. Neoconstitucionalismo e Ativismo. A ideologia fadada ao fracasso do arbítrio. Dissertação (mestrado em direito). Data da defesa: 08/03/2017. 126f. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017, passim;