I
Os sufixos gregos –μός e -ισμός transitaram ao latim como –ismus. Do latim transitaram ao português como -ismo. Na língua portuguesa, é importante constituinte de novos vocábulos. Da mesma forma se dá nas línguas francesa [-isme], italiana [-ismo], espanhola [-ismo], inglesa [-ism] e alemã [-ismus]. De acordo com famoso dicionarista, nos séculos XIX e XX o uso do sufixo «se disseminou para designar movimentos sociais, ideológicos, políticos, opinativos, religiosos e personativos, através dos nomes próprios representativos, ou de nomes locativos de origem, e se chegou ao fato concreto de que potencialmente há para cada nome próprio um seu der. em –ismo» (HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001). Daí a produção de palavras como sebastianismo [mito messiânico], conservadorismo [ideologia política], parlamentarismo [sistema de governo], atletismo [modalidade esportiva], dadaísmo [movimento estético], catolicismo [corrente religiosa], solecismo [vício de linguagem] e autismo [transtorno de desenvolvimento]. Como se percebe, com –ismo se podem exprimir várias coisas. Essa indeterminação semântica é, porém, um problema comum aos sufixos. Segundo JOÃO BATISTA RIBEIRO DE ANDRADE FERNANDES, «os suffixos não têm, como succede aos prefixos, a significação exacta e positiva; apresentam apenas uma idéa vaga e pouco definida» (Grammatica Portugueza – curso superior. 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves: 1920, p. 130). Quem prefixa com semi-, contra-, pré– e tri-, exprime com precisão, respectivamente, as ideias de metade, oposição, anterioridade e três. Por outro lado, quem sufixa com -ão, exprime ora aumentativo [v. g., patão, cachorrão], ora origem [v. g., coimbrão, aldeão]. Raramente há univocidade. É o que ocorre ao sufixo -ismo, que delimita só vagamente o significado das palavras dele derivadas (para um aprofundamento no tema: GIANASTACIO, Vanderlei. O sufixo -ismo na história das gramáticas da língua portuguesa… <http://www.usp.br/gmhp/publ/GiaA1.pdf>).
Não sem razão, o vocábulo GARANTISMO é bastante vago e pouco definido. Trata-se do produto lexical da junção «garantia» + «-ismo». Verifica-se aí uma sufixação isocategorial: vai-se de um substantivo [garantia] a um outro substantivo [garantismo]; não se muda de classe gramatical, pois. Diferencia-se da sufixação heterocategorial, em que se pode chegar a um substantivo partindo-se, e. g., de um adjetivo [protestante → protestantismo], verbo [transformar → transformismo], numeral [primeiro → primeirismo] ou advérbio [sempre → semprismo]. Quando se fala em Garantismo, sugere-se uma doutrina das garantias, ou de algo que seja uma garantia. Entretanto, com isso se diz ainda muito pouco. Por isso, é preciso espessar-se o termo, agregando-se ao substantivo algum adjetivo. Pode-se refiná-lo semanticamente falando-se, e. g., em Garantismo Jurídico. Nesse caso, sugere-se uma doutrina mais específica, que trata dos sistemas de garantias no direito, ou do próprio direito em si mesmo como uma garantia ou como um sistema de garantias. Por fim, pode-se incrementar o refinamento falando-se em Garantismo Jurídico Processual. Aqui, sugere-se uma doutrina das garantias no processo e/ou uma doutrina do próprio processo como uma garantia ou como um sistema de garantias. Mesmo assim, para se desfazer a ambiguidade infligida à expressão, é preciso esclarecer qual o conceito de garantia empregado.
II
Prestigiado dicionário assim define a palavra GARANTIA: «Garantia (gha-ran-ti-a), s. f. fiança: segurança, abonação, caução. || Garantias constitucionaes ou simplesmente garantias, direitos, privilégios, isenções que a constituição de um paiz confere aos cidadãos: O governo suspendeu as garantias. || F. Garante + ia» (AULETE, Francisco Júlio de Caldas. Diccionario contemporaneo da lingua portugueza. v. 1. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881, p. 848). Note-se que o operador «||» – que significa «OU» – separa as unidades léxicas usadas na definição em dois grandes blocos: 1) de um lado, agrupam-se os vocábulos «fiança», «segurança», «abonação» e «caução»; 2) de outro, agrupam-se os «direitos, privilégios, isenções que a constituição de um paiz confere aos cidadãos». Ainda assim, se há um quid que distingue (1) e (2), há outrossim um quid que os une. Tanto o bloco (1) quanto o bloco (2) são perpassados pela ideia de PROTEÇÃO ou TUTELA. Afiançar, assegurar, abonar e caucionar significam, em certa medida, proteger. Quem afiança aluguel, v. g., ampara o locador ao eventual inadimplemento do locatário. Igualmente, quando a constituição de um país confere direitos, privilégios e isenções a um cidadão, ela o ampara ao Estado. No entanto, quem protege, protege alguém de algo. Em (1), o algo de que se protege é uma decepção, uma insatisfação, um incumprimento, uma inefetividade, um desapontamento, um fracasso ou uma quebra de expectativa. Pois quem afiança, quem presta fiança, quem é fiador, faz exatamente isto: protege o credor de eventual frustração por inadimplemento do afiançado. Nesse sentido, garantia = TUTELA CONTRA FRUSTRAÇÃO. Por sua vez, o algo de que se protege em (2) é um excesso, uma imoderação, um desvio, um abuso, um desmando, um desregramento. Pois quando uma constituição garante, atribui garantia, é garante, ela faz exatamente isto: protege o cidadão dos eventuais arbítrios cometidos pelo Estado. Nesse sentido, garantia = TUTELA CONTRA ARBÍTRIO.
Em (1), por exemplo: penhora, caução e depósito são garantias ao juízo da execução; penhor é garantia ao credor pignoratício; hipoteca é garantia ao credor hipotecário; anticrese é garantia ao credor anticrético; caução, fiança, seguro fiança locatícia e cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento são garantias ao locador de imóvel urbano; caução por dano iminente é garantia ao proprietário ou possuidor vizinho de obra ameaçada de ruína; fiança bancária, seguro-garantia e caução em dinheiro ou títulos da dívida pública são as garantias possíveis da execução do contrato administrativo. Em contrapartida, em (2), por exemplo: são garantias contra o arbítrio legislativo o controle difuso de constitucionalidade, o mandado de injunção, a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental e as «limitações constitucionais ao poder de tributar»; são garantias contra o arbítrio administrativo o concurso público, a licitação, a impessoalidade, a publicidade, a eficiência, a ação popular, o habeas data; são garantias contra o arbítrio jurisdicional a reclamação ao CNJ, a reclamação às ouvidorias de justiça, o contraditório, a ampla defesa, o juiz natural, o duplo grau de jurisdição; são garantias contra o arbítrio ministerial a denúncia ao CNMP, o habeas corpus, mandado de segurança, a imparcialidade, o promotor natural.
III
Pode haver garantismo jurídico em que garantia signifique tutela contra frustração. Decerto os ramos dogmáticos mais receptivos a essa teorização são os direitos das obrigações e das coisas. Afinal, nele se estudam as garantias que tutelam o direito de crédito. Todavia, num plano mais geral, pode-se tratar garantia como proteção contra insatisfação de direitos subjetivos tout court. Pode-se tomá-la num plano menos dogmático que zetético. Pode-se torná-la «o» tema de uma teoria normativa do direito. É o que faz FERRAJOLI. Para ele, a todo direito subjetivo deve corresponder – mas não corresponde necessariamente – uma garantia, que o assegure. Ao contrário de HANS KELSEN, para o jurista italiano a previsão de um direito subjetivo não implica desde já a existência do respectivo dever [= garantias primárias ou de primeiro grau]. Tampouco implica de plano a sancionalibidade de condutas ilícitas ou a anulabilidade de atos inválidos [= garantias secundárias ou de segundo grau]. Se há dever desde sempre, é o dever do Estado de instituir as garantias primária e secundária correlatas ao direito subjetivo estatuído. Se é direito constitucional, a tarefa de atuá-lo compete ao legislador; se infraconstitucional, ao administrador. De todo modo, a inércia no exercício da competência não se pode suprir pelo juiz. Haveria afronta à democracia e à separação de poderes. Por isso, se ao direito falece previsão de garantia, instala-se uma «lacuna estrutural» e, em consequência, um risco de inefetividade (v., p. ex., FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoria del diritto e della democrazia. v. I-III. Roma-Bari: Laterza, 2007; idem. La democracia attraverso i diritti: il costituzionalismo garantista come modello teorico e come progetto politico. Roma-Bari: Laterza, 2013; idem. Dei diritti e delle garanzie: conversazione con Mauro Barberis. Bologna: il Mulino, 2014; idem. La logica del diritto: dieci aporie nell’opera di Hans Kelsen. Roma: Laterza, 2016). Portanto, para o insight ferrajoliano, garantir é neutralizar a frustração de expectativa imperativa. É proteger contra ofensa e decepção.
Para uma teorização como essa, as garantias tendem a se classificar em função do direito subjetivo protegido: 1) se o direito fundamental é de primeira dimensão, estatui-se-lhe garantia de direito individual; 2) se de segunda dimensão, garantia de direito social; 3) se de terceira dimensão, garantia de direito coletivo lato sensu. Logo, quando se fala ferrajolianamente em garantismo processual, fala-se do processo como garantia que atende ao direito material. No processo, os direitos subjetivos se realizam mediante atuação das garantias secundárias. Desse modo, o processo é uma garantia secundária por meio da qual atuam as demais garantias secundárias. É garantia secundária ao quadrado. É garantia instrumental. Não se olvide, porém, que a realização do direito subjetivo mediante atuação processual das garantias secundárias se faz pelo Estado-juiz. Logo, se o processo é instrumento para realizar direitos subjetivos, deve ser antes instrumento de quem os realiza. Ou seja, deve ser instrumento da jurisdição. Logo, não há incompatibilidade epistemológica entre o garantismo ferrajoliano e o instrumentalismo processual. Ao contrário: ser instrumento da jurisdição é precondição para o processo ser garantia e proteção contra insatisfação e inefetividade. Não sem motivo a realização de direitos subjetivos à tout prix é «justo título» ao aumento dos poderes do juiz (dentre eles os poderes de flexibilizar o procedimento legal e «dinamizar» o ônus da prova). Mais: não surpreende que o garantismo ferrajoliano conceba o Poder Judiciário e o Ministério Público (que no Brasil não se cinge à função acusatória) como instituições de garantia secundária, pois usam o processo para realizar direitos fundamentais (sobre a garanticidade do MP na América Latina: FERRAJOLI, Luigi. Per un Pubblico Ministero come istituzione di garanzia. Garantismo penal integral. 4. ed. Org. Bruno Calabrich et al. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2017, p. 34-45).
IV
Também se pode falar em garantismo jurídico tomando-se garantia como tutela contra arbítrio. Essa doutrina tende a uma teoria constitucional e, assim, a um modelo dogmático. Afinal de contas, o dado essencial invariável do fenômeno constitucional é a limitação do poder. No plano vertical, a limitação se faz mediante outorga de garantias aos cidadãos; no plano horizontal, mediante separação de poderes (embora dessa separação também defluam ao cidadão garantias). Portanto, a todo poder corresponde uma garantia do cidadão, que o limite, ainda que implícita. Se assim não fosse, surgiria poder incontrastável e, por conseguinte, déficit de republicanidade (razão por que para o garantismo não-ferrajoliano jamais pode haver «lacuna estrutural» e, assim, risco de situação antirrepublicana). Nesse sentido, garantia significa situação jurídica ativa cujo exercício pelo cidadão tende a evitar, mitigar ou eliminar os efeitos nocivos do arbítrio estatal. Mais: nesse sentido, garantismo é garantística, ou seja, é o sub-ramo da dogmática constitucional especializado nas garantias dos cidadãos (para um aprofundamento, v. nosso Notas para uma garantística. <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-40-notas-para-uma-garantistica>]. Sem garantias, não haveria propriamente cidadãos, mas meros súditos [lat.: subditus = sub, «abaixo», + ditus, «colocado, reduzido a» = «submisso» = «subjugado»]. Como já visto: 1) se a garantia refreia abuso de função administrativa, é garantia contra-administrativa; 2) se abuso de função legislativa, garantia contralegislativa; 3) se abuso de função jurisdicional, garantia contrajurisdicional; 4) se abuso de função ministerial, garantia contraministerial (obs.: para o garantismo não-ferrajoliano, a ideia do Poder Judiciário e do Ministério Público como «instituições de garantia» não faz o menor sentido: na verdade, trata-se de instituições de poder, que – como tal – devem ser controladas pelos cidadãos mediante as garantias correlatas que se lhes outorgam).
Assim, o processo – o «devido processo legal» [CF/1988, art. 5º, LIV] – tem caráter constitucional e, portanto, «realidad sustantiva» [ANTONIO MARÍA LORCA NAVARRETE]. É devido porque é elo de comunicação obrigatório entre jurisdição e jurisdicionados; é legal porque só se pode regular em lei. Enfim, processo é garantia de liberdade contrajurisdicional, pois é procedimento legal rígido em contraditório tendente a proteger o cidadão contra eventuais excessos e desvios do Estado-juiz. Integra il club delle prime donne dos direitos fundamentais de primeira dimensão. Logo, não serve à jurisdição como «instrumento», «ferramenta» ou «utensílio» flexível e adaptável à realização dos direitos subjetivos, ainda que se trate de «direitos fundamentais prestacionais, sociais ou de segunda dimensão». Serve ao jurisdicionado para que essa realização não seja arbitrária (desservindo, pois, à jurisdição quando ela descai em excesso ou desvio). Dessa forma o procedimento – civil ou penal – não pode sofrer deformações plásticas nem elásticas per officium iudicis, sob pena de o processo ser capturado pelo Estado in causa sua e, com isso, ter a sua garanticidade despotenciada. Por isso, para o garantismo não-ferrajoliano, a expressão «garantia instrumental» é uma contradictio in terminis. Isso significa que o garantismo não-ferrajoliano e o instrumentalismo processual são modelos teóricos entre si antagônicos [mors tua vita mea]. No exterior, esse tipo de garantismo é defendido por nomes como ALVARADO VELLOSO [Argentina], EUGENIA ARIANO DEHO [Peru], FRANCO CIPRIANI [Itália], JUAN MONTERO AROCA [Espanha] e LUÍS CORREIA DE MENDONÇA [Portugal]; no Brasil, hoje, são seus principais defensores ANTÔNIO CARVALHO, DIEGO CREVELIN, GLAUCO GUMERATO RAMOS, IGOR RAATZ, JÚLIO CESAR ROSSI, LÚCIO DELFINO, MATEUS COSTA PEREIRA, NATASCHA ANCHIETA e WILLIAM GALLE DIETRICH.
V
Se para a corrente ferrajoliana o processo é garantia contra a insatisfação de direitos subjetivos, é fácil entrever as diferenças funcionais entre o processo penal e o processo civil. No processo penal, o suposto titular de direitos satisfazendos é o acusado; no processo civil, o autor. Por isso, na visão ferrajoliana, o processo penal é freio contrajurisdicional para a efetivação dos direitos individuais do acusado; o processo civil, motor pró-jurisdicional para a efetivação dos direitos sociais do autor. Nesse tipo de dualismo, institutos como boa-fé objetiva, iura novit curia, dinamização do ônus da prova, inquisitivismo probatório, livre convencimento motivado e flexibilização procedimental tendem à rejeição no processo penal e ao acolhimento no processo civil (cf., p. ex., ZANETI JR. A relação entre garantismo penal e garantismo civil – fragilização virtuosa e não virtuosa ao princípio da legalidade. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. n. 14. jul/dez 2013, p. 116: «Temas como boa-fé objetiva no processo, distribuição dinâmica do ônus da prova, inversão do ônus da prova etc., são na verdade consequência direta do caráter não privatista que os direitos fundamentais impõem ao processo civil, sendo ilimitados adequadamente no campo penal, no qual a descodificação e os microssistemas são desaconselhados, mas, por outro lado, necessários no campo civil lato sensu, no qual a dinâmica das relações entre direitos fundamentais impõe para sua melhor tutela normas flexíveis e adaptáveis»). Noutras palavras: o garantismo ferrajoliano tende a um processo penal de feição acusatório-adversarial e a um processo civil de feição inquisitório-judiciocrática.
Em contrapartida, para a corrente não-ferrajoliana, esse dualismo é esquizofrênico (cf. AROCA, Juan Montero. La paradoja procesal del siglo XXI: poderes del juez penal (libertad) frente a los poderes del juez civil (dinero). Valencia: Tirant lo Blanch, 2014, p. 100: «Cómo justifican los procesalistas que se autocalifican de publicistas que al servicio del dinero importe la verdad material y los poderes del juez se aumenten, mientras que al servicio de la libertad sea simplemente la logran las partes según el principio de contradicción y los poderes del juez se hayan visto disminuidos en el signo XX»). Se o processo em si é garantia constitucional de liberdade contrajurisdicional [CF, art. 5º, LIV], então há absoluta identidade funcional entre o seu desdobramento procedimental penal e o seu desdobramento procedimental civil (obs.: para essa corrente, o processo não se adjetiva nem de civil nem de penal, senão os diferentes procedimentos, que se instituem na lei em função do ramo do direito material aplicável). Tanto no procedimento penal quanto no procedimento civil, às partes se garante um debate pautado por liberdade [freedom = autonomia individual da parte para manejar os fatos, os fundamentos jurídicos, os argumentos, as provas e os pedidos] e por «liberdade» [liberty = não inferência do juiz no modo como as partes manejam os fatos, os fundamentos jurídicos, os argumentos, as provas e os pedidos]. Por isso, na visão não-ferrajoliana, o processo – em qualquer de seus desdobramentos procedimentais – é sempre freio contrajurisdicional. Nesse tipo de monismo, institutos como boa-fé objetiva, iura novit curia, dinamização do ônus da prova, inquisitivismo probatório, livre convencimento motivado e flexibilização procedimental são intransigentemente rejeitados, pouco importando o ramo do direito material aplicável.
Garantismo ferrajoliano | Garantismo não-ferrajoliano | |
Tipo de modelo teórico | Zetético (jusfilosófico) | Dogmático (constitucional) |
Conceito de garantia | Tutela contra frustração [= reforço de efetividade ou eficácia social] | Tutela contra arbítrio [= reforço de liberdade] |
Classificação das garantias | Em razão do direito subjetivo a se realizar: 1. garantia individual; 2. garantia social; 3. garantia coletiva lato sensu | Em razão do poder a se controlar: 1. garantia contra-administrativa; 2. garantia contralegislativa; 3. garantia contrajurisdicional; 4. garantia contraministerial |
Relação com o instrumentalismo processual | Compatibilidade | Incompatibilidade (oposição) |
Função do processo | Garantir a realização do direito material | Garantir que eventual realização do direito material não seja arbitrária |
Relação com a jurisdição | Pró-jurisdicionalidade civil [inquisitivismo processual civil] e contrajurisdicionalidade penal [adversarialismo processual penal] | Contrajurisdicionalidade [adversarialismo processual]
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Natureza do Poder Judiciário | Instituição de garantia | Instituição de poder
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«Propriedades mecânicas» do procedimento | Flexibilidade procedimental civil e rigidez procedimental penal | Rigidez procedimental
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Relação entre a natureza do direito material e o aumento dos poderes do juiz | Relevância
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Irrelevância |
VI
É preciso a) erradicar a confusão semântica que ronda a expressão garantismo processual, b) separar bem o garantismo ferrajoliano do garantismo não-ferrajoliano, e c) identificar a dignidade científica de cada um. Com isso se corrigem, ao menos, três equívocos.
- i) O primeiro equívoco está em enxergar na corrente ferrajoliana «o» garantismo [= garantismo sem aspas = garantismo autêntico = supergarantismo = ortogarantismo] e na corrente não-ferrajoliana um «garantismo» [= garantismo com aspas = garantismo inautêntico = subgarantismo = pseudogarantismo] (sem razão, portanto, ZANETI JR., Hermes. Ob. cit., p. 111-144). Como já visto,garantismoderiva de garantia, que tem dois significados fundamentais: proteção antifrustracional e proteção anti-arbitrária. A corrente ferrajoliana se apega ao primeiro; a não-ferrajoliana, ao segundo. Nenhuma das duas, porém, têm carta-patente para o monopólio do termo. Ambas têm idêntica legitimidade para usá-lo dentro do sentido que cada uma delas lhe atribui. Ademais, o vocábulo já integra o léxico da língua portuguesa, o que lhe democratiza ainda mais o uso.
Por sua vez, (ii) o segundo equívoco está em criticar o garantismo não-ferrajoliano como se estivesse criticando o garantismo ferrajoliano, como se ALVARADO VELLOSO, EUGENIA ARIANO DEHO, FRANCO CIPRIANI e JUAN MONTERO AROCA, por exemplo, fossem seguidores fiéis de LUIGI FERRAJOLI. Quem tece críticas desse tipo seguramente nunca leu qualquer dos autores da corrente anti-arbitrária. Ignora-lhe a existência e a autonomia. Não sabe que ela se discerne da corrente ferrajoliana porque tem premissas, base metodológica e estatuto epistemológico próprios. Eventualmente pode haver – e há – pontos de convergência entre uma corrente e outra. Contudo, os pontos de divergência são muitos e abissais. No fundo, é crítica de orelhada, de ouvir dizer, sem conhecimento próprio, que só se apega ao uso condominial do termo garantismo. Ora, é inadmissível censurar uma corrente de pensamento inteira com base no suposto sentido de um termo, sem se inteirar responsavelmente das ideias dos autores que a integram. Há aí preguiça nominalista misturada com impostura analítica.
Por fim, (iii) o terceiro equívoco está em criticar o garantismo não-ferrajoliano por infidelidade ao garantismo ferrajoliano, como se a primeira corrente fosse tributária da segunda. O garantismo anti-arbitrário não é uma versão popularizada, vulgarizada, mal transplantada, deformada ou incompreensiva do garantismo antifrustracional. É coisa outra (sem razão, portanto, PEYRANO, Jorge W. El cambio de paradigmas en materia procesal civil. <http://www.pensamientocivil.com.ar/system/files/el_cambio_de_paradigmas_en_materia_procesal_civil.pdf>). Não existe qualquer continuum ou ar de familiaridade entre eles. Aliás, o desenvolvimento teórico da corrente anti-arbitrária prescinde de qualquer diálogo com as categorias do pensamento de FERRAJOLI, visto que ela tem as suas próprias.
Para se evitar mais confusão entre as duas correntes, talvez conviesse a uma delas alterar o próprio nome. Mas se houvesse um nome melhor, a alteração já se teria feito. Na verdade, ambas foram «amaldiçoadas» pela linguagem natural cotidiana, que é rica, polissêmica e, por via de consequência, inadequada ao rigor científico.