“O problema da imaginação, portanto,
está na sua abertura para a construção de mundos possíveis e, sobretudo, impossíveis”.
Francisco Razzo.
- Considerações iniciais
Agarrar-se à parcialidade das partes e à imparcialidade do juiz para colocar este no lugar de tutor daquelas é supor que imparcialidade se confunde com o total desinteresse do juiz no resultado do processo. Quando muito, que ele tem interesse na “justiça do resultado”, seja lá o que isso queira significar.
Quero problematizar isso a partir das premissas (hipóteses) de que todos os seres humanos possuem racionalidade limitada e são movidos por recompensas, conformes ou não ao Direito, e que, não raro, passam ao largo do controle por meio dos instrumentos deste. O objetivo é propor que tenhamos uma visão mais modesta sobre o papel do juiz no processo.
Cuida-se de superar o que estou aqui chamando de desnivelamento metodológico: a atitude da doutrina de teorizar, de um lado, sobre o juiz de modo idealizado e otimista, e, de outro, sobre os demais sujeitos processuais, notadamente as partes e seus advogados, de modo realista e pessimista.
Para tanto, sugerirei uma leitura cruzada das propostas de Alexandre Morais da Rosa, que trabalha o processo penal a partir da teoria dos jogos – proposta extensível, mutatis mutandis, a todos os procedimentos –, Mateus Costa Pereira, que explicitou o problema da ideologia em sentido amplo, e Eduardo José da Fonseca Costa, que contribuiu para a disseminação, compreensão e apropriação, no limite do possível, das conquistas da psicologia cognitiva no direito processual.
Antes, um esclarecimento: não se venha com a crítica fácil de que ver o processo como um jogo é concebê-lo como “sede da anomia moral, um lugar para a guerra, a disputa desleal e desregrada, a inimizade e quejandos”[2]. Isso é falácia do espantalho vertida por flagrante erro metodológico. Quem trabalha o processo como um jogo não está prescrevendo como a prática processual deve ser, mas descrevendo a prática processual tal como ela é, e, a partir daí, pelo menos no caso de Alexandre Morais da Rosa, apresentando sugestões (lícitas!) de atuação para obter os resultados (lícitos) desejados. É possível criticar a descrição da realidade demonstrando que ela não condiz com a realidade que pretende descrever. Contudo, não é possível criticar uma descrição da realidade argumentando que a realidade deveria ser diferente. Tal crítica se dirigiria à prática descrita, não à descrição da prática. E também é possível criticar as sugestões de atuação demonstrando que elas não são capazes de ou não são as mais adequadas para conduzir aos resultados desejados. Como quer que seja, a referida abordagem não pode ser associada a uma espécie de zona livre da ética e da moral. Pelo contrário. Os estudos a partir da teoria dos jogos são expressos com relação à necessidade de fair play como antídoto ao doping processual[3]. Deontologicamente, portanto, defende uma teoria do jogo limpo.
Feita a ressalva, avanço.
- A racionalidade limitada do ser humano e o necessário nivelamento metodológico
Pensar o processo a partir da teoria dos jogos é levar em consideração que vários fatores concorrem na sua prática: os jogadores, as regras do jogo, as recompensas e táticas e estratégias. Aproprio-me dessa abordagem porque penso que uma das suas contribuições é abrir os nossos olhos para percebermos os sujeitos processuais não como entidades abstratas e ideais – fictícias e, portanto, moduláveis conforme a narrativa de turno –, mas como entes reais e concretos – prenhes de finitude compreensiva e alheios ao idealismo de experimentalistas, como os engenheiros sociais. Na minha opinião – e creio estar em sintonia com a proposta de Alexandre Morais da Rosa; se não, assumo como uma leitura minha –, isso é um gatilho que pode e deve ser apropriado pela doutrina, com vistas a propor o que chamarei de nivelamento metodológico.
Explico. A ideia de função social do processo civil aspira, de um lado, a busca por maior igualdade material, eliminando ou atenuando diferenças de tratamento baseadas em condições socioeconômicas, culturais, raciais, religiosas, políticas e de classe, e, de outro, a orientação do ordenamento jurídico no sentido da primazia dos interesses coletivos sobre os interesses estritamente individuais[4]. Fala-se que a credibilidade do processo como instrumento de solução de conflitos de interesses depende essencialmente de sua capacidade de oferecer aos respectivos titulares uma perspectiva de equanimidade[5].
Para tanto, defende-se a atribuição de um sem-número de poderes ao Estado-juiz, com ou sem previsão legal, que abrange tanto medidas intraprocedimentais (v. g. poderes instrutórios oficiosos, adequação do procedimento às especificidades do caso concreto, consultar a parte sobre seu interesse em obter tutela provisória não requerida, recomendar a modificação da sua argumentação para tornar o pedido mais conforme aos precedentes etc.) quanto a própria definição do direito material (v. g. adequação do direito aos ideais de justiça, moralidade, interesse público e sua atualização em face das transformações sociais). Essa doutrina espera que, com isso, o juiz supra eventuais deficiências tanto das partes (v. g. que, por falta de habilidade, inclusive do próprio advogado, deixa de requerer a produção de uma prova importante) quanto do legislador (v. g. que disciplina certo tema de maneira insatisfatória). O juiz é concebido como sujeito dotado de competências cognitivas inauditas, enquanto os demais sujeitos processuais e o próprio legislador, como sujeitos dotados de competências cognitivas limitadas. Confesse-se ou não, tenha-se consciência disso ou não, é o que se passa.
É o que me leva à proposta de Mateus Costa Pereira[6]. A partir de Edgar Morin e Nelson Saldanha, ele distingue ideologia em sentido amplo (=paradigma do conhecimento) e ideologia em sentido estrito (=relação do indivíduo com o poder) e sustenta – a meu ver com razão – que há um encavalamento paradigmático no âmbito da ideologia em sentido amplo: enquanto o juiz é pensado sob o paradigma homo sapiens sapiens (=sujeito dotado de racionalidade plena), os demais sujeitos processuais – e o próprio legislador (ou melhor, os integrantes do legislativo) – são concebidos desde o paradigma do homo sapiens demens (=sujeitos dotados de racionalidade limitada). Contudo, não há qualquer evidência de que o juiz, só por sê-lo, dota de racionalidade plena, e que todos os demais, apenas por suas condições, dotam de racionalidade limitada.
A rigor, se prova há é do contrário, considerados o inconsciente (psicanálise) e, sobretudo, os vieses cognitivos (psicologia cognitiva). E assim vamos a Eduardo José da Fonseca Costa[7].
Anota o autor (págs. 53-54) que heurísticas “são procedimentos de simplificação mental. Deles se utiliza inevitavelmente a mente humana para processar informações complexas vindas do exterior e possibilitar a tomada de decisões de forma eficiente. Trata-se de juízos intuitivos, não fundamentados, baseados em conhecimento parcial, experiência ou suposições, que às vezes são corretos e às vezes são errados, sem haver uma segurança lógica absoluta. Nesse sentido, produzem-se ‘atalhos cognitivos’ [cognitive shortcuts] ou ‘regras de ouro’ [rules of thumb], a partir das quais as pessoas realizam julgamentos simplificados sem que tenham de tomar em consideração todas as informações relevantes e contando apenas com um conjunto limitado de pistas. É relevante sublinhar que as heurísticas surgem porque termos recursos cognitivos e motivacionais limitados, razão pela qual precisamos usá-los de forma eficiente e rápida para lograrmos decisões cotidianas. Porém, embora elas geralmente contribuam para a nossa vida diária, às vezes as heurísticas resultam em desvios sistemáticos e previsíveis, que levam a decisões subótimas”.
Demonstra (p. 86 e ss.) que o economista estadunidense Herbert A. Simon, vencedor do Prêmio Nobel de economia de 1978, opôs à teoria da escolha racional um critério mais cingido à realidade das ações, qual seja, o da racionalidade limitada, a qual admite no processo mental humano limitações inerentes e é assim anunciado: a capacidade da mente humana de formular e resolver problemas complexos é muito pequena se comparada ao tamanho dos problemas cuja solução é necessária para um comportamento objetivamente racional no mundo real – ou mesmo para uma aproximação razoável a essa racionalidade objetiva. Não se trata de substituir o homo aeconomicus, o “maximizador de utilidade e resultados”, pelo homo psycologicus, o “egocêntrico contemplativo portador de volições”, ambos modelos irreais. Simon indica duas espécies de racionalidade: racionalidade substancial – ser racional nesse sentido significa assumir um comportamento com conteúdo e objeto específicos; racionalidade procedimental – ser racional nesse sentido significa ter capacidade computacional de processar informações e, tomando-as todas em consideração, chegar pari passu a um comportamento esperado. Para a Economia, um comportamento substancialmente racional (=maximização da utilidade pela capacidade de obter resultados ótimos para a alocação de recursos escassos, no caso da Economia Neoclássica) pressupõe uma racionalidade procedimental ilimitada (=plena capacidade dos agentes de balancear todas as alternativas possíveis). Contudo, Simon diz que, na tomada de decisões, consideramos cada opção e, depois, selecionamos uma, tão logo encontramos aquela que seja satisfatória ou simplesmente boa o suficiente para cumprir nosso nível mínimo de estabilidade. Não refletimos sobre todas as opções possíveis e não calculamos depois com cuidado qual, entre todo o universo de opções, maximizará nossos ganhos e minimizará nossas perdas. Ao contrário: refletimos sobre o mínimo número possível de opções necessárias a que se chegue a uma decisão que acreditamos satisfazer nossos requisitos mínimos. Como já se pode intuir, há uma relação entre heurísticas e racionalidade limitada: atalhos cognitivos aceleram o processo decisório e, forjando respostas satisfatórias aos nossos requisitos mínimos de racionalidade, encerram-no.
Portanto, aferrado ao paradigma do homo sapiens sapiens o modelo de juiz da função social do processo civil não passa de uma ficção. Pior, uma ficção parcial, que, no âmbito da ideologia em sentido estrito, fornecerá, reconheça-se ou não, legitimação simbólica para a sobreposição do juiz às partes e do Judiciário ao Legislativo. Pior ainda, uma ficção parcial curiosa: opera sob essas bases para falar numa pretensa humanização do processo civil e municiar o juiz de poderes tais e para alcançar resultados quais que só poderiam ser satisfatoriamente exercidos e cumpridos por sujeitos dotados de capacidades sobrehumanas.
Isso só é explicável quando se teoriza pensando o juiz como entidade abstrata e idealizada e os demais sujeitos processuais – vamos tirar o legislador da conversa – como entes concretos e não-idealizados. Apenas abstrações idealizadas podem ser dotadas de racionalidade plena; concretudes finitas não alcançam mais do que racionalidade limitada – que, como visto, não precisa ser pouca, mas é finita e, portanto, limitada.
Pois é exatamente isto que eu chamo de desnivelamento metodológico: situar seres igualmente humanos em paradigmas cognitivos distintos apenas em razão do lugar institucional que ocupam. Sugiro que procedamos a um nivelamento metodológico: que teorizemos sobre as partes e o juiz como entes igualmente concretos e finitos condenados a um padrão de racionalidade limitada. Penso que isso fará com que vejamos com mais naturalidade a ideia de que cada sujeito processual tem suas funções e que não há um tutor entre eles. Só assim humanizaremos o processo.
- O homem está sempre em busca de recompensas
É a deixa para retornar a Alexandre Morais da Rosa: assumir que todos os sujeitos processuais são entes concretos e finitos condenados a um padrão de racionalidade limitada ainda nos fará ver com mais maturidade o fato de que todos os seres humanos – no processo: as partes e o juiz –, se movem por recompensas.
Sem afobação nem melindre, por favor. Recompensa é aqui compreendida como o resultado (elogiável ou desprezível, altruísta ou egoísta etc.) que se pretende (consciente ou inconscientemente) obter a partir das nossas condutas (comissivas ou omissivas). Só isso. Toda conduta é conformada à obtenção de determinado resultado. Ele pode ser bom ou ruim, no macroplano da vida, lícito ou ilícito, no microplano do direito. Pessoas – sujeitos processuais – agem mirando recompensas. Portanto, ligar a ideia de recompensa a sentido necessariamente pejorativo é erro crasso, caricatura deletéria e vulgar. O fenômeno é muito mais complexo.
Processualmente falando, recompensa é “o que pretende cada um dos jogadores no Processo (…) Não é só a vitória que interessa, mas sim o que significa a vitória naquele processo. Deve-se ter a capacidade de antecipar quais os ganhos com a condenação/absolvição para os jogadores diretos e indiretos, já que, por exemplo, um caso midiático difere do desprovido de cobertura. Reputações, narcisismo, interesses ocultos, atuam na sombra do caso”[8].
É importante é saber quais recompensas são perseguidas e por quem. Exemplos podem auxiliar: quando se pensa nas partes, a principal recompensa buscada é a obtenção de provimento favorável lato sensu (v.g. procedência total ou parcial – caso do réu que aceita a procedência de um dos pedidos, mas não do(s) outro(s) –, decisão terminativa – quando o réu descarta decisão de mérito por antever que ali será vencido – a ser considerado para que não se leia com afobação a decantada primazia do julgamento do mérito do art. 4º, CPC); ao pensar no juiz, a recompensa perseguida pode (no sentido vulgar, de possibilidade, não técnico-jurídico, de licitude) ser a realização da autonomia do direito, a satisfação do seu autossenso de justiça, a aprovação do grupo, da família e/ou do público, a não reforma ou anulação de suas decisões, o atingimento de metas de produtividade para fins de promoção etc.
Esse singelo rol indica recompensas perseguidas tanto pelas partes quanto pelo juiz e que são lícitas (v. g. obter a execução forçada de uma prestação inadimplida – parte; realizar a autonomia do direito – juiz) e ilícitas (v. g. ludibriar juízes para que “branqueiem” simulações – partes; proferir decisões com determinado conteúdo para obter aprovação da opinião pública – juiz), ainda que não necessariamente criminosas.
Ocorre que, manejando instrumentos jurídicos, dificilmente (para não dizer jamais) saberemos quais são as recompensas efetivamente perseguidas pelos sujeitos processuais, pois demandaria a inexequível devassa do seu universo intrapsíquico. E é claro que isso constitui um problema para toda e qualquer teoria, bem como para escolhas legislativas. Nenhum deles jamais será capaz de contornar completamente o problema. Em maior ou menor medida, todas são impotentes frente a esse fenômeno.
Mas por que, então, isso seria particularmente grave em relação à proposta da função social do processo? Porque ignorando esse intrincado fenômeno que resulta da racionalidade limitada orientada por recompensas ela defende a concessão de amplos poderes ao juiz que, pela generalidade e abrangência com que são propostos, dificilmente poderão ser controlados sob bases minimamente objetivas. Ao fazê-lo, portanto, estimulam uma atuação orientada por um espectro extremamente largo de recompensas, com o nítido risco de avanço do juiz sobre funções das partes (quebra de impartialidade) e seu engajamento com determinados resultados (quebra de imparcialidade), ainda que para tanto seja necessário corrigir a lei (substituindo-se ao Legislativo = quebra da separação dos Poderes).
“Balela! Há recurso para corrigir erros ou mesmo arbítrios do juiz”. O sonolento argumento olvida o óbvio: os mesmos problemas e limitações cognitivas, estruturais, e temporais recaem igualmente sobre os julgadores que atuam em tribunais, pois não dizem respeito ao juiz A ou B nem à instância em que atual, mas ao ser humano. E olha que não estou esquecendo dos quase sempre esquecidos – e, por vezes, assaz influentes – assessores judiciais. Aliás, seria importante que a doutrina levasse essa categoria mais a sério e ajudasse a retirá-la do limbo jurídico no qual se encontra[9].
Destarte, há propostas teóricas que reconhecem o problema, sabem que são impotentes em face da realidade e visam, pelo menos, não estimular a busca por recompensas que, por mais bem intencionadas que sejam, costeiam o limite do sistema jurídico. E há propostas que – conscientes ou não dos riscos, pouco me importa – têm uma visão extremamente ambiciosa do processo – ou melhor, do Judiciário e, mais, do juiz – e acabam por estimular ações orientadas por recompensas que o sistema jurídico talvez não recepcione e não dê conta de racionalizar e conter.
Atentar para isso pode ser um passo importante para desfazer mistificações simplistas – como a do juiz paritário no debate, formulação retórica atraente e vazia que, no detalhe, se confunde com o juiz contraditor – e encarar o fenômeno processual de modo mais maduro e realista – nada a ver com realismo jurídico –, contribuindo para a instituição e modulação de medidas corretivas/contrafáticas, sempre considerando que são pessoas humanas que nele atuam. Quanto ao juiz, levam-se a sério medidas de preservação da imparcialidade que envolvem desenviesamento e de incompatibilidade[10].
- A cientificidade da premissa da racionalidade limitada do juiz
Pode-se dizer que aí falta rigor científico (crítica feita a James Goldschmidt, por sua forma de trabalhar o processo como situação jurídica). Mas já é passada a hora de indagar: que rigor científico há na tese da função social do processo civil – e em qualquer outra que se autoproclama diferente dela – quando atribui padrões de racionalidade diferentes aos juízes e aos demais sujeitos processuais? Pelo que temos de ciência em psicologia cognitiva, nenhum.
Veja, leitor, que neste texto e com esses argumentos eu não estou questionando decisões legislativas. Isso até pode – e deve – ser feito, mas sob outras bases e noutras oportunidades. Aqui o meu ponto é com o que é feito por parte da doutrina. Ou pelo menos com parte do que parte da doutrina faz. Com essa fração do que é produzido pelo instrumentalismo processual e suas adjacências, como o cooperativismo processual. Mas, como disse, é com parte da parte. Há nuances. Várias. Diverge do que penso, mas cito com vivo respeito a posição do prof. Flávio Luiz Yarshell[11], que, embora não proscreva os poderes instrutórios do juiz, aceita-os sob grande reserva e parcimônia, livre de qualquer resma de idealismo, exatamente por reconhecer o risco real de quebra da garantia da imparcialidade. Algo muito diferente do constrangedor argumento de que o juiz não é imparcial quando vai atrás da verdade, da justiça, da igualdade e bobices do tipo. Ainda que venha embrulhado no discurso de que semelhante postura judicial é necessária para evoluir, avançar, mudar[12], não há aí cientificidade.
E também não tem senso de realidade. Vá exigir que essa nada modesta missão seja satisfeita por um juiz de uma afastada comarca de vara única, premido por imensa, variada e complexa carga de trabalho (v. g. decidir sobre ampla gama de matérias – muitas das quais ele não domina –, realizar audiências, atender advogados e partes, gerir a unidade judiciária etc.), pressionado por constantes cobranças de metas de produtividade e envolto por déficits de pessoal e de estrutura. Tirante exceções, pessoas completamente extraordinárias – e acreditem: são poucos mesmo entre juízes – e que contam com equipes extraordinárias – e acreditem: mesmo juízes extraordinários são prejudicados por equipes ruins –, não é factível.
Então, enquanto não reprogramarem as capacidades cognitivas humanas; enquanto não houver plena disciplina das recompensas perseguidas pelos homens; enquanto não forem entregues aos juízes condições pessoais e estruturais ideais de trabalho; enfim, enquanto tudo isso não for resolvido, não me persuadirei dessa tentativa de situar o juiz no estágio de tutor das funções processuais dos demais sujeitos processuais – e, vamos recuperá-lo agora, do legislador, o representante (bem ou mal) democraticamente eleito pelo povo. Seguirei considerando que, como os demais seres humanos, juízes têm racionalidade limitada e naturalmente perseguem recompensas, tanto compatíveis quanto incompatíveis com o Direito, não raro de modo inconsciente e – por que não – escamoteada, como todo e qualquer ser humano.
Noel Struchiner faz uma crítica mordaz aos que negam a objetividade do direito. Diz ele: “posso fechar os olhos e imaginar que o direito não é objetivo. O ponto é que eu tenho que fechar os olhos. Portanto, a posição instrumentalista calcada na indeterminação radical do direito parece ser falaciosa, por demandar que a realidade não seja encarada da forma como ela se apresenta”[13].
Vou parafraseá-lo para dizer o seguinte: posso fechar os olhos e achar que o juiz é dotado de uma racionalidade plena (homo sapiens sapiens) e que ele só age movido pelas mais nobres e juridicamente conformes recompensas. O ponto é que eu tenho que fechar os olhos. Portanto, a posição calcada na superioridade cognitiva e ética do juiz parece ser falaciosa, por demandar que a realidade não seja encarada da forma como ela se apresenta.
- Considerações finais
Tenho plena consciência de que minhas palavras não exercem a menor persuasão sobre quem crê que deve transformar o mundo. Não é a ele que me dirijo, porém. Esse aí já viu o fim da história. Ouve apenas a si mesmo e àqueles em quem se vê refletido. Naufragou[14]. Falo ao leitor que tem outros pendores ou que, pelo menos, está aberto a revê-los – exatamente como aconteceu comigo mais de uma vez e que, sem embargo, pode vir a ocorrer novamente.
A você que tem essa disposição de ânimo, proponho que vejamos as coisas assim: todos os sujeitos processuais são seres humanos; todos os seres humanos possuem racionalidade limitada e se movem por recompensas, que podem ser conformes ao Direito ou não (embora nem sempre sejam fáceis de detectar e tampouco necessariamente criminosas). Aceitar isso permite que vejamos os sujeitos processuais – no que ora importa, partes e juiz – sem idealismos abstratos, mas como sujeitos concretos e finitos. Isso implicará reconhecer – embora não gostemos disso – que há juízes e advogados bons e ruins – ainda que, média geral, os primeiros sejam mais bem formados que os segundos – e que, eventualmente, a parte pode ser prejudicada pela imperícia do seu advogado, mas, também, pelo arbítrio do juiz. O que consola é que, no mais das vezes, o nível técnico é suficiente e arbitrariedades não são cometidas. Pois assim é a média: nem péssima nem perfeita, apenas média. É tão boa quanto pode ser. Pessoas têm limites cognitivos e estão sujeitas a condições externas que não controlam e que interferem no seu desempenho – ineliminável margem de álea da vida. Aceitando isso, creio que haverá mais abertura e maturidade para a entender – não necessariamente se conformar – que cada sujeito processual tem um papel e que nenhum é tutor do outro. Sem isso, a divisão equilibrada de tarefas entre os sujeitos processuais não passará de quimera.
Eu sei, estou propondo algo bem sem graça… Tedioso, até.
Mas não se angustie: a qualquer tempo você poderá fugir em direção às idealidades lassas, onde tudo pode e deve ser melhor – assim, simplesmente porque um dia você imaginou como as coisas devem ser; e afinal, se você imaginou, claro!, é porque é possível, certo? Assinada a disponibilidade do refúgio, permita-me apenas te lembrar que toda escolha cobra um preço. E que a conta é cobrada inexoravelmente no mundo real. Bem longe do seu gabinete – ou não…
[1] Mestre em Direito Processual pela UFES. Conselheiro da ABDPro. Parecerista ad hoc da RBDPro. Professor do curso de direito das FAACZ (Aracruz-ES).
[2] CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no Processo Civil Moderno. Contraditório, proteção da confiança e validade prima facie dos atos processuais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 211.
[3] “doping é fraude, jogo sujo (…) No campo do processo penal entendido como jogo, pode-se invocar, quem sabe, a noção de doping processual para compreender a necessidade de o jogo acontecer com boa-fé”. (ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 3 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 193).
[4] Cf.: MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Função Social do Processo Civil Moderno e o Papel do Juiz e das Partes na Direção e na Instrução do Processo. Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, vol. 37, p. 140-150, jan./mar. 1985.
[5] Cf.: MOREIRA, José Carlos Barbosa. La igualdad de las partes en el proceso civil. In: Temas de Direito Processual. Quarta série. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 68.
[6] PEREIRA, Mateus Costa. Introdução ao Estudo do Processo. Fundamentos do garantismo processual brasileiro. Belo Horizonte: Letramento / Casa do Direito, 2020, no prelo.
[7] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a Imparcialidade a Sério. Proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: JusPodivm, 2018
[8] ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 3 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, págs. 195-196.
[9] Cf. COSTA, Eduardo José da Fonseca. DELFINO, Lúcio. Persiste a Situação de Desdém Legislativo dos Assessores Judiciais. Consultor Jurídico, São Paulo, 12 mar. 2015. Opinião. Disponível em: https://bit.ly/2Wfr1Ut. Acesso em 08.05.2020. Defendendo que a eles se aplicam as hipóteses de impedimento e suspeição: COSTA, Eduardo José da Fonseca. SOUSA, Diego Crevelin de. In: Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I. Coords. Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro et ali. São Paulo: Lualri Editora, 2017, p. 244-246).
[10] Cf. COSTA, Eduardo José da Fonseca. Juiz de Instrução e Juiz de Sentença. Empório do Direito, Florianópolis, 15 abr. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3ce3KYw. Acesso em 06.05.2020.
[11] YARSHELL, Flávio Luiz. Antecipação da Prova sem o Requisito da Urgência e Direito Autônomo à Prova. São Paulo: Malheiros, 2009, págs. 131-133
[12] Típico verniz da atitude manipuladora, ensina: QUINTÁS, Alfonso Lópes. A Tolerância e a Manipulação. São Paulo: É Realizações, 2018, p. 189 e ss.
[13] STRUCHINER, Noel. Indeterminação e objetividade. Quando o direito diz o que não queremos ouvir. In: Direito e Interpretação. Racionalidades e instituições. Orgs. Ronaldo Porto Macedo Jr. Catarina Helena Cortada Barbieri. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 123.
[14] Cf. LILLA, Mark. A Mente Naufragada: sobre o espírito reacionário. Trad. Clóvis Marques. 1 ed. Rio de Janeiro: Record, 2018, passim. A despeito da especificidade do seu estudo, o autor deixa claro que naufragada é toda e qualquer mente extremista, ou seja, tanto reacionários como revolucionários.