59. A (IN)JUSTIFICABILIDADE NORMATIVA DA LEGIFERAÇÃO JUDICIÁRIA

A Roberto Campos Gouveia Filho

Para a ala enragée do iluminismo judicial, o Poder Judiciário deve agir sempre que o Poder Legislativo «não aja» ou «aja de forma inadequada» na concretização de direitos fundamentais. Noutras palavras, sustenta-se que a inação legislativa na realização desses direitos exige uma atuação jurisdicional substitutiva. Até mesmo o Ministro CELSO DE MELLO defende o ativismo judicial como «uma necessidade transitória de o Poder Judiciário suprir omissões do Poder Legislativo ou do Poder Executivo que são lesivas aos direitos das pessoas em geral ou da comunidade como um todo» (<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=165752>. Acesso 20 Abr. 2020). Contudo, essa doutrina jurisdicionalista pró-ativa tem trabalhado dogmaticamente com subfundamentos ou fundamentos não normativos: quanto tempo durará essa «necessidade transitória»? O que se precisará atingir para que ela cesse? Qual estado de coisas se vislumbra com isso? Para qual ideologia política esse estado de coisas é um ideal? Para bem se investigar a possibilidade de uma «legiferação judiciária» no concerto harmônico das funções estatais, um ponto de partida firme é a compreensão analítica da noção mesma de função no quadro dos «direitos subjetivos» (ou, como se prefere falar hoje, no quadro das situações jurídicas).

Segundo WESLEY NEWCOMB HOHFELD, a expressão «direito subjetivo» pode assumir quatro significados: a) pretensão [claim]; b) faculdade [privilege]; c) poder [power]; d) imunidade [immunity]. Por princípio de correlação, essas quatro situações jurídicas ativas simples ou elementares se relacionam, respectivamente, com outras quatro situações jurídicas passivas simples ou elementares: a) dever [duty]; b) falta de pretensão [non-right]; c) sujeição [liability]; d) falta de poder [disability]. O esquema de correlações daí obtido é o seguinte: i) pretensão/dever; ii) faculdade/falta de pretensão; iii) poder/sujeição; iv) imunidade/falta de poder (cf. MORITZ, Manfred. Il sistema hohfeldiano dei concetti giuridici fondamentali. Apêndice à obra Wesley Newcomb Hohfeld. Concetti giuridici fondamentali. Turim: Giulio Einaudi Editore, p. 166-167; COOK, Walter Wheeler. Hohfeld’s contributions to the science of law. Prefácio à obra Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasonings and other essays by Wesley Newcomb Hohfeld. New Haven: Yale University Press; Londres: Humphrey Milford – Oxford University Press, p. 5).

Todavia, essas situações jurídicas simples podem interligar-se sob a titularidade de um mesmo sujeito, e com relação a um determinado bem [= objeto da relação jurídica], formando-se um conjunto unitário e unificante de situações jurídicas simples. São as situações jurídicas complexas. É o que se passa, v. g., com o direito de propriedade, que resulta de um conjunto unitário de faculdades(o proprietário de um imóvel pode dar a ele a destinação que repute ser a melhor, ou simplesmente não usá-la); pretensões (pode exigir que não seja turbado ao utilizar e/ou desfrutar do imóvel, bem como excluir todos os demais daquela utilização e/ou fruição); poderes (o proprietário está legitimado a locar o imóvel, dispor dele por testamento ou, por qualquer outro modo, aliená-lo ou defendê-lo por ações pertinentes); e imunidades (em princípio, o proprietário não pode ser desapropriado, senão mediante prévia e justa indenização em dinheiro) (cf. TOMASETTI JR., Alcides. Comentários à lei de locação de imóveis urbanos. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 81).

Outro exemplo de situação jurídica complexa é a função ou o poder funcional, que resulta da junção poder + deverGrosso modo, função é o dever de exercitar um poder no interesse de outrem, que não o próprio. Está implicado aí um atuar a serviço de algo que transcende a própria pessoa do agente titular. Um exercício egoístico dá lugar a um exercício altruístico. Dentro de um quadrante limitado de poderes que lhe são conferidos, o titular tem o dever de exercitá-los com o objetivo de atender a determinados interesses que não são os seus, mas de um outro, que a norma jurídica contempla como o beneficiário dos esforços a se empreenderem. Logo, se o agente é titular do compósito poder-dever, o paciente é titular, respectivamente, do compósito sujeição-pretensão: embora sujeito aos efeitos do exercício do poder por outrem, o beneficiário tem pretensão a que esse exercício se faça no seu melhor interesse (cf. LUMIA, Giuseppe. Lineamenti di teoria e ideologia dei diritto. 3 ed. Milano: Giuffrè, 1981, p. 120: «Dai diritti soggetttivi vanno nettamente distinte le potestà. II conceito di potestà scaturisce dal coniugarsi di un potere con un obbligo. Nella potestà, infatti, determinati potere sono attribuiti al singolo per il soddisfacimento di interesse che non sono specificamente suoi: tali, per esempio, Ia potestà conferita ai genitori sui figli minori, I poteri attibuiti agli organi pubblici nell’interesse della collettività, ecc. Ma coloro che sono investiti di una potestà non sono liberi di esercitare o meno i poteri ad esse conferiti nell ‘interesse altrui, ma sono obbligati ad esercitarli; e il perseguimento di tali interessi non è affifato al mero arbitrio dei titolare della facoltá, ma alla sua prudente discrezionarità. Colui che è investito di una potestà è quindi titolare di poteri, il cui uso discrezionale costituisce per lui un obbligo: ciò si suole indicare coi termini di ufficio o, piú frequentemente, di funzione: Correlativamente alia potestà corrispondono dal lato passivo dei potere, una soggezione, e dal lato altivo deli ‘obbligo, una pretesa»).

No âmbito do direito privado, são exemplos de função: i) o poder familiar [= dever dos pais de exercitarem o poder de criação, formação e administração dos bens dos filhos no interesse destes]; ii) a tutela [= dever de exercitar, no interesse de menor que se acha fora do poder familiar, os poderes de administrar-lhe os bens, dirigi-lo, protegê-lo, representá-lo e assistir-lhe nos atos da vida civil]; iii) a curatela [= dever de cuidar dos interesses de outrem que se encontra incapaz de fazê-lo]; iv) a gerência [= dever de exercitar o poder de administração de uma empresa no interesse dela]; v) a sindicância condominial [= dever de exercitar o poder de administração de um condomínio no interesse dos condôminos]; vi) a situação do testador [= dever, incumbido pelo próprio testador, de que se lhe cumpram as disposições de última vontade]. Como se vê, a função tem três elementos fundamentais: 1) um poder; 2) dever; 3) um interesse alheio a ser protegido. Nesse sentido, incorre em disfunção ou exercício irregular de função – e, portanto, na prática de ilícito – o titular que comete: a) excesso de poder (ou seja, investe-se em poder que não lhe foi conferido); b) anêmico (ou seja, não exercita o poder, ou, embora o exercite, o faz de modo sub-ótimo, ou seja, de maneira insuficiente, deficiente ou ineficiente); c) desvio de finalidade (ou seja, procura atender ao próprio interesse, ou ao interesse de quem não seja contemplado pela norma jurídica que outorga a função).

Ora, havendo aí ilícito, é preciso cogitar-se da sanção correspondente, i. e., das consequências jurídicas negativas imponíveis ao titular da função que a exercita de forma irregular. Para os objetivos do presente texto, interessam mais de perto as sanções imponíveis por exercício anêmico da função. De ordinário, exercício inexistente, insuficiente, deficiente ou ineficiente implica, entre outras possibilidades, a suspensão ou a perda da função, com ou sem a substituição do titular. Pode haver, assim: α) suspensão da função com substituição temporária ou ad hoc do titular [ex.: nomeação de defensor para atuar em audiência caso, intimado, o advogado do réu não compareça – CPP, artigos 263 e 265]; β) suspensão da função sem substituição do titular [ex.: suspensão do poder familiar por arruinamento dos bens dos filhos – CC, art. 1.637]; γ) perda da função com substituição definitiva do titular [ex.: destituição de tutor por negligência – CC, art. 1.766]; δ) perda da função sem substituição do titular [ex.: extinção do poder familiar por abandono do filho – CC, art. 1.638, II].

No entanto, o âmbito mais fecundo para a disseminação de funções é decerto o direito público. No direito constitucional, por exemplo, existem três funções axiais: a função jurislativa (que é função típica do Poder Legislativo, mas não exercida só por ele), a função administrativa (que é função típica do Poder Executivo, mas não exercida só por ele) e a função jurisdicional (que é função típica do Poder Judiciário, mas não exercida só por ele) [CF/1988, art. 2º]. Uma vez que é papel da Constituição estabelecer os limites positivos e negativos do poder político, cabe apenas a ela prever quando há o exercício anêmico de uma função típica pelo respectivo Poder [= regra de conduta], e quando se autoriza que esse Poder seja substituído pontualmente por outro [= regra de sanção]. Mais: por força da separação dos Poderes [CF/1988, artigos 2º e 60, § 4º, III], é preciso que essas regras constitucionais sejam excepcionais, claras, objetivas e expressas. Por isso, a Constituição não prevê sanção para todo e qualquer disfuncionalidade por anemia. Ademais, nem sempre a sanção consiste na substituição ad hoc de um Poder por outro. Há aqui, portanto, um regime de fragmentariedade: visto que a interferência de um Poder sobre outro deve ser mínima, as hipóteses constitucionalmente qualificadas de disfunção e de conseguinte substituição ad hoc são reservadas a situações graves selecionadas com pudor pela própria Constituição.

Por essa razão, quando se diz, por exemplo, que o Poder Judiciário pode suprir omissões do Poder Legislativo de forma geral e irrestrita, há a necessidade de justificação da vigência conjunta de – pelo menos – cinco regras jurídicas de direito constitucional, cada uma delas com hipóteses de incidência e consequências jurídicas bem definidas: i) REGRA 1 [NORMA PRIMÁRIA DE CONDUTA]: Se o Poder Constituído é o Poder Legislativo [= hipótese de incidência], então ele tem o dever de legislar sobre os temas A, B e C do modo x, y ou z [= consequência jurídica]; ii) REGRA 2 [NORMA PRIMÁRIA DE QUALIFICAÇÃO]: Se o Poder Legislativo não legisla sobre os temas A, B e C, ou se não legisla sobre eles do modo x, y ou z [= hipótese de incidência], então o Poder Legislativo se encontra em um estado de disfunção ou anemia funcional [= consequência jurídica]; iii) REGRA 3 [NORMA SECUNDÁRIA DE COMPETÊNCIA]: Se o Poder Legislativo se encontra num estado de disfunção ou anemia funcional, estando em mora total ou parcial [= hipótese de incidência], então o órgão competente para pronunciar a existência desse estado dilatório é o Poder Judiciário [= consequência jurídica]; iv) REGRA 4 [NORMA SECUNDÁRIA DE SANÇÃO]: Se o Poder Legislativo se encontra em anemia funcional reconhecida por órgão competente [= hipótese de incidência], então o Poder Judiciário pode desempenhar como substituto a função legislativa típica, suprindo a legiferação no específico ponto temático em que ela se operou de maneira inexistente, insuficiente, deficiente ou ineficiente [= consequência jurídica]; v) REGRA 5 [NORMA SECUNDÁRIA DE IMUNIDADE]: Se é o Poder Judiciário que se encontra em um estado de anemia funcional [= hipótese de incidência], então o Poder Legislativo não tem competência nem para pronunciar a existência desse estado, nem para desempenhar substitutivamente a função jurisdicional típica [= consequência jurídica].

Sem que se justifique a associação dessas cinco vigências normativas, nenhum jurista dogmático pode advogar as usurpabilidades pontuais de função típica legislativa pelos juízes e tribunais. Direito é sistema de normas e, assim, essa defesa só tem consistência jurídica se tem respaldo normativo. Por sua vez, em um Estado Democrático de Direito Legislado [CF, artigos 1º e 5º, II], não há norma jurídica sem respaldo em texto escrito de direito positivo. Entretanto, a maioria das regras jurídicas acima explicadas não tem qualquer base textual na Constituição Federal de 1988. Não há dispositivo constitucional vigente cujos fatores semânticos determinem a maior parte dessas cinco estruturas normativas de sentido. Entendimento contrário exigiria do jurista o ônus de demonstrar que o direito não é um sistema de normas [direito ≠ ordenamento jurídico], ou que o direito não é apenas um sistema de normas [direito > ordenamento jurídico], apontando quais outros elementos extranormativos determinam as cinco regras jurídicas de direito constitucional supramencionadas. De uma vez por todas, a CF/1988 não institui sanções judiciárias contra todo e qualquer silêncio legislativo. Nem poderia, pois muitas vezes há aí autêntico silêncio eloquente [al.: beredtes Schweigen]. Ou seja, não raro, o legislador não se omite, mas – dentro do seu âmbito indevassável de discricionariedade – decide não regular, barrando deliberadamente certo fato social do trato legal. Por isso, ante o temerário risco de se entrever inércia funcional onde há apenas silêncio eloquente, um único caminho é seguro: aferrar-se à letra do texto constitucional vigente.

E, a bem da verdade, a CF/1988 só prevê uma única modalidade de suprimento judiciário da apatia legislativa: a concessão de «mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania» [art. 5º, LXXI]. Ainda assim, essa integração pelo STF se faz in casu et inter partes. Diferentemente do que consagrado na jurisprudência ativista do Supremo Tribunal Federal e na parcela mais imaginativa da doutrina, na ação direta de inconstitucionalidade por omissão não deve haver imponibilidade de sanção judiciária. A propósito, de acordo com MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, «tendo a discrição quanto ao momento e o modo de tornar juridicamente impositiva a promessa (programática), o legislador não descumpre a Constituição porque retarda, se omite, na regulamentação, de preceito não autoexecutável da Lei Suprema. Ao contrário, essa omissão se coaduna com o cumprimento da Constituição porque esta – reitera-se – deixou ao legislador a escolha do momento (bem como do modo) de execução da norma programática» (Uma falácia: a inconstitucionalidade por omissão. O Estado de São Paulo. São Paulo. nº 34454. publ. 25/06/1987, p. 32). Daí por que, quando muito, o STF declara a inconstitucionalidade por omissão e a dá ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias [art. 103, § 2º]. O provimento tem força declarativa [= pronúncia da omissão inconstitucional] e eficácias alicerçais condenatória [= constatação do incumprimento do dever de efetivar a norma constitucional] e mandamental [= ordem para a adoção das providências necessárias]. A eficácia constitutiva positiva não adentra esse espectro, pois a CF/1988 não outorga ao STF a função de suprir a omissão legislativa editando ad hoc a norma infraconstitucional indispensável à efetividade da norma constitucional. Na realidade, o STF emite præceptum de faciendo; preceitua o órgão legislativo para que supra a própria omissão. Com isso se preserva a autonomia do Poder Legislativo sem se atravessarem as fronteiras semânticas desenhadas pelo § 2º ao artigo 103 da CF/1988. Logo, afora as hipóteses excepcionalíssimas de cabimento de mandado de injunção, não compete ao Poder Judiciário suprir sponte propria a mora legislativa, sob pena de se desnaturar de órgão técnico-burocrático em órgão político-deliberativo. Faltar-lhe-ia, aliás, legitimidade democrática para tanto.

É bem verdade que, sob o ponto de vista pragmáticodescritivo, é simplista afirmar que a atividade política se circunscreve ao Poder Legislativo e que, portanto, a legiferação judiciária é evitável. Sob o ponto de vista dogmático-prescritivo, porém, a justificação analítico-hermenêutica da legiferação judiciária é ainda bastante fraca. Afinal de contas, ela se apoia praticamente em high performance slogans sem positividade («necessidade de atendimento ao sentimento social», «exigência de concretização dos direitos fundamentais», «falta de representatividade das minorias», «falta de representatividade dos democraticamente eleitos» etc.), cujos conteúdos altamente vagos tornam problemático qualquer controle objetivo-racional. Talvez isso significa que não haja mais nada em que se apoiar. Por enquanto, o que se tem visto é a retórica dos políticos tentando capturar o direito. Gente com vocação menos científica que política. Para tanto, fantasiam-se ora de juízes, ora de jurisconsultos…

Autor

  • Eduardo José da Fonseca Costa

    Juiz Federal em Ribeirão Preto, Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP, Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual, Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual



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