DIREITO E IRONIA

ANÁLISE DE UMA PROPOSTA LITERÁRIA EM RUDOLF VON JHERING

DIREITO E IRONIA: ANÁLISE DE UMA PROPOSTA LITERÁRIA EM RUDOLF VON JHERING

O Sério e o Jocoso em Jhering

O pensamento de Rudolf von Jhering possui um lugar de destaque entre os clássicos do direito e não é para menos, ele foi um dos maiores responsáveis para o desenvolvimento da ciência do direito e para a aprimoramento da pesquisa jurídica.[1]

Já numa fase madura de seu pensamento, sob a advertência de que não pretendia que o livro viesse pertencer à literatura jurídica científica, Jhering escreve “O Sério e o Jocoso na ciência jurídica” (Scherz und Ernst in der Jurisprudenz)[2] e como já se antevê no título, a obra é composta de textos jocosos, com fina ironia e reveladoras verdades sobre o direito. Certamente é um texto inovador e representa um período importante de sua obra. O livro chega a quatro edições, sendo a primeira em 1884 e a última, modificada pelo autor, em 1891, pouco menos de um ano antes de sua morte (ADEODATO, 2002, p. 167)

O livro possui quatro textos, todos guardando bastante divertimento para seus leitores. Três dos textos são jocosos com um fundo muito sério e o outro é sério, mas sem faltar partes jocosas muito criativas e estimulantes.

As concepções às quais se dirigem as gozações mostram as graves falhas e até mesmo algumas aberrações da ciência do direito no final do sec. XIX.

Todos eles possuem um aprofundamento que nos põe a refletir e repensar o direito, muito mais do que quando muitas vezes nos atemos em livros muito eruditos e compilados em grandes volumes.  Como o próprio autor anuncia ao final de seu prólogo, o seu propósito é mostrar que as piadas somente buscam que o sério se resulte mais eficaz e prático, de tal modo que se da primeira impressão de hilaridade não se suceder nenhuma outra, a obra poderia ser dada por perdida, sem utilidade.

As três primeiras partes da obra estão dedicadas ao jocoso (piadas) e a quarta ao sério (verdade), mas a nenhum de meus leitores deve escapar que as quatro perseguem uma mesma e única finalidade, já que o jocoso tem por missão dar mais relevo ao sério. Não quero afirmar que esse seja o fim da totalidade e cada uma das chacotas, pois muitas delas foram postas com o mero animo de brincar. Mas espero que, em geral, o leitor não deixe de ter a impressão de que também o jocoso tem neste escrito seu significado sério e, ainda que como primeiro efeito somente faça rir o leitor, se não tiver outra transcendência, estimaria que o trabalho fracassou em seu propósito. (JHERING, 1987, p. 36)[3]

O livro todo é escrito com uma descontraída ironia, mas sem sarcasmos ou ranços de agressividade. Permeia a obra um fio latente que revela seus sólidos conhecimentos do direito e da história romana, bem como o pleno domínio dos conceitos jurídicos (dogmáticos) de seu tempo, sem deixar escapar a força de sua formação e inclinação filosófica que ganha um tom bastante alto ao final da terceira parte, escolhida para os propósitos deste texto como adiante será apresentado.

Com  excelente humor, Jhering ironiza os erros das direções tomadas em sua época pela filosofia pura e jurídica. A seu ver, por inspiração de uma nova metodologia científica ensaiada na Idade Moderna, por um lado pela matemática, sob o fio condutor do pensamento cartesiano, e por outro pela física, sob as indicações do pensamento de Bacon – enquanto sequentemente Kant tratava de submeter este caminho às diretrizes daquele outro -, a filosofia tomou o caminho de direções que repercutiram diretamente no direito, sendo este, de modo geral, o alvo de sua humorística.

Temos em pauta, claramente, o racionalismo cartesiano na Escola do direito natural e das gentes, a influência do método analítico-sintético de Bacon e Galileo em Hobbes e o de Newton em Montesquieu, o encaminhamento de Hugo que posteriormente foi desenvolvido pela Escola Histórica e, também temos o pensamento de Hegel, apresentando a Razão e a História com letras maiúsculas e sua realização pelo Estado.

A terceira parte da obra é denominada “No céu (paraíso) dos conceitos jurídicos: uma fantasia”, ela começa com a constatação de que Jhering, repentinamente, se descobre morto e ao desprender-se de seu corpo e tornar-se espírito, é recebido no céu por uma figura luminosa chamada Psicóforos, que logo lhe afirma:

O mundo no qual até agora creste perceber, não existia mais do que em tua imaginação, igual ao tempo e o espaço, que eram forma de tua visão subjetiva, como deve saber se estudou a Kant e Schpenhauer. Tudo é ilusão e alucinação. O verdadeiro ser é de índole imaterial, todo o mundo é espírito e tu mesmo eres parte desse espírito. O que pensas, isso é o que tu és, o pensar e o ser são uma mesma e única coisa […] o tormento da vontade, como chamam vossos filósofos, que somente têm em vista a vontade terrena, há cessado para ti. De agora em diante, somente seu pensamento será querer. O que pensar, haverá como querido, e o que tiver querido, será realidade. O pensamento e a realidade são uno e no estado de transição não saberá se estas acordado ou sonhando, nem se o que experimenta é ilusão ou realidade. Este é o primeira sintoma de que tua consciência subjetiva está se extinguindo. (JHERING, 1987, p. 215)

Essa revelação inicial é seguida da de que Jhering estaria numa fase ainda de transição posterior à sua morte, como a crisálida no caminho de se tornar mariposa, de tal forma que nesse estado não pode saber se está acordado ou sonhando e nem se o que experimenta é ilusão ou realidade. Como em vida foi um grande romanista, então será levado ao céu dos conceitos jurídicos, pois lá poderá encontrar todos os conceitos com os quais se ocupou durante toda sua vida, não na forma imperfeita como os tinha na terra, mas em seu estado de perfeita pureza e beleza ideal, pois nesse céu as questões às quais os teóricos terrenos tentaram em vão uma solução, são contestadas pelos próprios conceitos.

Além do céu dos teóricos existem outros dois céus, o dos práticos e o dos filósofos do direito. Todos eles são bastante diferentes e a primeira diferenciação é feita pelo contraste entre o céu dos teóricos e dos práticos.

O céu dos práticos ainda pertence ao sistema solar e nele, portanto, ainda penetram os raios solares e também uma atmosfera adequada à rústica construção do jurista prático, que não pode subsistir no vazio que necessitam os conceitos. Enquanto nesse céu existem as mesmas condições da vida terrena, no céu dos conceitos um prático sequer pode respirar ou tampouco dar um simples passo, pois seus olhos não são feitos para a obscuridade que alí impera; um lugar lobrego em que reina uma noite tenebrosa, pois por mais que o sol seja a fonte da vida, os conceitos são incompatíveis com a vida. Os teóricos que ingressam nesse céu conseguem ali ficar e ver, pois na terra já estavam acostumados com essa obscuridade, “como a coruja, a ave de minerva, que vê no escuro” (JHERING, 1987, p. 217).

O problema inicial é que para ingressar no céu dos conceitos jurídicos é preciso passar por um exame; um exame no céu. Esse exame é precedido de um período de quarentena, para que a alma possa se desfazer de todo ar atmosférico trazido da terra, um verdadeiro veneno para o céu dos conceitos jurídicos, que fica localizado no último rincão do universo, pois os conceitos não suportam contato com o mundo real. Nesse momento, Psicóforos chama atenção para uma curiosidade; de uns tempos pra cá com a chegada de um tal de Puchta, o paraíso dos conceitos tem recebido um considerável nome de juristas da Alemanha, a maioria professores, mas há também políticos apaixonados pelas ideia de Bismarck. Jhering, então, pergunta se Savigny estava lá e o guia diz que depois de vários problemas de adaptação, ele passou no teste.

Após a quarentena há uma opção: ou logo se faz o exame ou pode-se, optativamente, antes, dar uma volta pelo céu para conhecer rapidamente o lugar. O personagem escolhe a segunda opção e, então, é acompanhado de um outro espírito que também havia sido professor de direito romano, mas já não pode se nominar, pois desde que bebeu da fonte do esquecimento, se esqueceu de todo seu passado e também seu próprio nome.

Ao começar sua caminhada pelo céu dos conceitos jurídicos, Jhering se depara com um monte de esquisitices. O primeiro lugar a que vai é a academia de ginástica, onde as almas vão quando estão cansadas de contemplar conceitos. A primeira coisa estranha é uma máquina que reparte cabelo. Uma das atividades do exame é a de que deverá dividir um cabelo em 999.999 partes exatamente iguais, cujo resultado será dado por uma balança que é tão sensível que se um raio de sol a tocar isto já basta para inclinar seus pratos. O que chama atenção é como alguns que lá adentraram chegaram a se destacar tanto nessa tarefa que foram capazes de dividir cada uma dessas partes em outras 999.999 frações e o prêmio do campeão é receber uma coroa como a de láurea, consistente em cabelos repartidos por ele mesmo, até que alguém consiga supera-lo.

Ao lado da máquina de repartir cabelos há uma vara muito lisa (pau de sebo) que está lá para ser escalada. Ela revela a escalada dos conceitos jurídicos difíceis. Quem passa pelo exame tem a chance de trepa-la por três vezes. A vara possui três coifas em três níveis de altura, ao escala-la deve-se chegar até a primeira, pegar um dos problemas que contém e voltar a subir, as outras duas somente podem ser alcançadas por escaladores consumados, tanto que lhe é advertido que somente um teria conseguido chegar à coifa superior e ao ver o problema que encontrou, logo o pôs em seu lugar de volta. Em suma, o importante é ter o problema para se escalar e não para se resolver e lá todos os problemas são teóricos, nenhum possui cunho prático. No céu dos conceitos jurídicos impera claramente “a ciência pura, a lógica jurídica e a condição de seu império e para toda magnificência que emana consiste no desentendimento absoluto das questões da vida”. (JHERING, 1987, p. 222)

Na sequência, o falecido Jhering é informado que junto ao salão dos conceitos, onde estão os conceitos puros, há um gabinete anátomo-patológico, em que estão postas as deformações e distorções que sofreram os conceitos no mundo real.

A próxima máquina – dentre várias outras que não serão possíveis de serem todas mostradas e explicadas – é o aparato da ficção. Este, adverte a alma guia, pode ser compreendida sem ajuda, pois como se sabe, seu alto valor é para os fins do direito, algo bem conhecido pelo candidato.

Entre diálogos sobre a que seu condutor estava se dedicando e várias outras máquinas inúteis como as que lhe sucederam, eles chegam no muro da vertigem, que fecha o recinto. Sua altura é tão imensa que os olhos não podem alcançar onde termina. Olhando atentamente conseguem ver um espírito que está treinando – adestrando-se – contra a vertigem e o que sucede com ele.

O muro se eleva por partes. Na parte inferior da senda há ainda a marca dos pés de nossos espíritos, mas à medida que se sobe ele vai se tornando mais estreito até chegar à finura de um de navalha de barbear. Esta é a senda da dedução dialética, na qual a razão, ao menor tropeço, corre perigo de cair ao precipício do absurdo. Nas partes superiores são muitos os que caem. Veja, aqui temos um exemplo. O homem cai […] E veja que em seguida volta a levantar-se para repetir o experimento. Nossas cabeças são feitas para suportar golpes. (JHERING, 1987, p. 224)

O próximo lugar é a Academia de História do Direito, dedicada exclusivamente a um só ramo da história do direito romano que supera, em muito, todos as outros pelo seu interesse e valor científico. O seu principal exercício, não é a investigação da protohistória, mas sim, a necessidade de restauração de fórmulas e dos textos romanos. Ao entrar na academia logo se vê um tablado (lousa) de ensaios. Nele estão os textos romanos que apresentam lacunas e que devem se restaurados. O curioso neste trabalho, adverte o espírito guia, é que cada um dos que o faz, completando as lacunas, está firmemente convencido de ter alcançado a solução justa e é essa convicção que lhe dá satisfação, isso permite ao candidato compreender que as derivações podem ter a troca de uma só letra, basta que se troque uma palavra e tudo pode tomar outro sentido.

Por fim, chegam ao lugar mais importante, localizado num edifício suntuoso, o salão dos conceitos. Em uma de suas alas laterais encontra-se o cerebrarium e na outra o gabinete anátomo-patológico. Neste lugar não há porta, deve-se dar com a cabeça na parede e será lhe dada a entrada.

O cerebrarium é onde se fabrica a substância cerebral para os teóricos. Essa substância colocada na cabeça do teórico, desde quando está em gestação, lhe proporciona a faculdade de pensar idealmente, o que não pode confundir com a faculdade de pensar em abstrato. Seu reino de trabalho está no reino da abstração, as questões concretas são deixadas aos práticos, de tal forma que elimine a antítese entre o pensar e a realidade. O teórico se encontra aí à altura do idealismo filosófico, para o qual o mundo real é uma pura ilusão, uma fantasia do sujeito.

Mas o mais importante, além desta substância, ali também é produzida uma outra para a intuição histórico-jurídica, baseada numa fórmula dosificada com fantasia que se agrega à substância teórica geral. Nesse momento surge uma das passagens mais ricas do texto travado no diálogo entre o espírito guia e o espírito candidato:

– É que somente o historiador do direito necessita de fantasia? Recordo ter lido, num escrito de Thomasio, que nenhum jurista, tampouco o prático, pode prescindir de uma boa dose de fantasia. Essa fantasia, diz, é necessária para ‘imaginar os estranhos casus juris’.

– Essa é a fantasia vulgar, a fantasia communis seu vulgaris. Para o historiador do direito ela não é suficiente. O historiador necessita uma fantasia muito especial, que é a que aqui se fabrica. A fabricação se baseia num agregado exato de fantasia poética, de fantasia poética seu eximia, que se agrega à substância cerebral teórico-jurídica. Se, se excede a proporção justa em somente uma pequena dose, o futuro portador do cérebro padecerá consequências bastante desagradáveis. A fantasia poética, que não se contenta então com os problemas da pura história do direito, não é absorvida por eles […] o poeta e o jurista travam um duelo. Tudo depende de quem resulta vencedor. […] a poesia imperfeita  inunda a jurisprudência. A poesia integral no resulta perigosa, pois esta não cai na tentação de assenhorar-se com temas jurídicos. Mas a poesia imperfeita essa sim tem que se temer! Nada, nem sequer os temas jurídicos mais áridos, estão a salvo do perigo de que, ao ve-los, essa poesia não caia em êxtase e mova o céu e a terra para transfigura-los com seu esplendor poético. O que pode ser mais sombrio que a ficção?  (JHERING, 1987, p. 229)

Do cerebrarium chegam ao salão dos conceitos. O lugar é tomado por um falatório, como numa bolsa de valores. Lá estão os conceitos jurídicos que são inconfundíveis por sua simples imagem, seus próprios rostos. Numa primeira vista são rapidamente identificados o Dolus, com sua oculta malícia, a Culpa lata com sua cara torpe, a Culpa levis com a falta de preocupação em seu semblante, a Mora sempre ali encostada, a Bona fides com sua inconfundível expressão de franqueza, honradez e sinceridade, a propriedade forte com membros robustos, bem nutrida, a obligatio sempre preocupada em saber se seu direito terminará por realizar-se e assim por diante. O contato com esse salão revela uma ilustração, uma imagem que mostra a personificação desses conceitos. Logo se vê os rostos deles, o que está à face, a sua persona.

Por fim, chegam ao gabinete anátomo-patológico, onde se encontram os conceitos para além de suas formas puras, com as deformações que sofrerem na terra já cometidas pelos próprios romanos, lá a passagem é mais rápida, pois o que impera ali é o erro, o desvirtuamento e já este é o céu dos conceitos jurídicos, em sua forma pura, essa verificação só garante a fortificação da pureza dos próprios conceitos.

Não restando mais nada para ver, chega o momento do exame. Depois de tudo o que foi visto, o candidato não quer de modo algum participar do exame, pois mesmo diante de toda magnificência que lá se pode ver e em que pese todos os jogos que servem de passatempo aos espíritos, tudo parece ser muito chato, sendo preferível ir para outro céu.

Como o falecido é jurista, lhe restam dois outros céus, o dos filósofos do direito e o dos práticos. O caminho escolhido, inicialmente, é para o céu filosofia do direito, muito mal vista pelo céu dos conceitos jurídicos, pois lá impera a razão e no céu dos conceitos deduz-se o direito dos próprios conceitos. Lá também é necessário um exame, mas antes de ser admitido é preciso fazer uma profissão de fé, a saber, de que as verdades jurídicas foram dados ao homem pela natureza e lhe são inatas e, portanto, o homem somente necessita pensar com energia para aflorar todas as riquezas que, em forma embrionária, encontram-se em seu raciocínio.

Outro problema, então, surge, pois tal profissão de fé, adverte o personagem, não lhe é possível, pois durante toda sua vida na terra professou o contrário, restando-lhe somente o céu dos práticos. No céu dos práticos se entra se maiores problemas, lhe diz o espírito guia, pois basta que tenha passado em seu exame jurídico na terra, para o qual, adverte, como se sabe, não se requer muitas condições. O máximo para possibilitar a entrada e que pode ser que seja dado a quem se candidata um caso para resolver e basta que este seja resolvido, não interessa muito saber como. Na verdade, no céu dos práticos não são muito exigentes, tampouco severos.

Nesse momento a narrativa vai chegando ao seu final, o novo guia que o levará para o céu dos práticos se aproxima e por um deslocamento em espaços imensuráveis, na velocidade do pensamento, chegam até o céu dos práticos onde já tomado por ar atmosférico novamente, se sentido livre e disposto, é informado que basta bater na porta para que possa se inscrever.

O bater na porta é o ponto de ligação para a revelação final do texto. Repentinamente, o personagem se apercebe que tudo era um sonho, pois estavam, na realidade, batendo em sua própria porta; era o carteiro que trazia a carta de um amigo. O que se passou é que ele acabou dormido sentado num sofá, enquanto lia um dos últimos livros publicados sobre direito romano. A carta recebida comentava exatamente o livro que estava sendo lindo quando o sono o dominou e ela trazia, como suma do relato da leitura da obra, precisamente a frase do Rei dos elfos de Goethe: “entre as folhas secas, murmura o vento”.

 

O Jogo e o Jocoso no Direito

No paraíso teórico de Jhering, os conceitos têm luz própria e os olhos da alma do teórico, já acostumados a ver na penumbra, no escuro, conseguem com eles lidar, pois quanto mais impenetrável a escuridão, melhor eles conseguem enxergar. Só os teóricos conseguem ver a diferença dos conceitos e compreende-los, algo que se assemelha aos problemas da Santíssima Trindade, em que só os eleitos conseguem ver.

O cenário do texto é composto pela constatação absurda – e finamente irônica – de se insistir na separação entre teoria e prática. Um dualismo que distancia e esvazia a vida, tanto dos que se vêem como os teóricos, quanto dos que se vêem como práticos e, pela insistência crítica de Jhering no campo da filosofia do direito e sua análise sobre a falácia naturalista e sua potência racionalizadora; o mesmo sucede com os filósofos do direito.

O divertimento provocado na leitura das partes que compõem o livro de Jhering possuem o engenhoso recurso de dizer a verdade rindo (Ridendo dicere verum). Por meio deste esquema ele produziu uma contundente crítica aos conceitualistas dogmáticos de sua época, alheios de toda realidade.

Esse jogo entre o sério e o jocoso de Jhering traz uma experimentação de transgressão das formas jurídicas.

Precisamos explorar mais os conceitos de jocus e o ludus no direito, é tempo de brincarmos, fazermos troça, chiste, tal qual fez seriamente Jhering com suas críticas aos teóricos e filósofos do direito. Trazendo para o plano de nosso País, em que agora temos visto insistentemente um trabalho para a construção de uma “jurisprudência do princípios” e de uma “teoria da decisão judicial” que merece mesmo troça – tanto pela via dos teóricos quanto pela dos práticos -,  pois o que impera ali é algo como o que ocorria no céu dos conceitos jurídicos e na Santíssima Trindade: somente os eleitos podem ver, já que, no fundo, o que se impõe é a questão de princípios, a questão dos princípios, que nada mais é do que a do principal, do soberano, do príncipe e do principado (DERRIDA, 2001, p. 45) que mantém a estrutura da captura da nossa violenta racionalidade, aquela mesma que reverbera e sustenta, dentre outras falácias, um modo propriamente violento que impõe o dualismo entre homem e animal e, portanto, daquele que impõe pelo direito e pela filosofia – essa muitas vezes tratada sem qualquer seriedade e rigor, o que o jogo também ensina – a metodologia do aprisionamento de si e dos outros, própria de um direito que não conhece (entre) o sério e jocoso.

[1] Recomendamos a leitura de nosso artigo Conceitos jurídicos e fantasia: notas sobre o sério e o jocoso no pensamento sociológico da Rudolf von Jhering. 2018 | v. 12 | n. 1 | p. 48-63 | ISSN 2317-2622. http://dx.doi.org/10.5935/2317-2622/direitomackenzie.v12n1p48-63.

artigo  e para um quadro geral da obra de Jhering a que estamos nos dedicando aqui recomenda-se a leitura do capítulo 8 da obra ética e retórica de João Maurício Adeodato (ADEODATO, 2002).

[2] A obra foi traduzida para o espanhol com o título Bromas y versa en la ciencia jurídica: un presente navideño para los lectores de obras jurídicas. (JHERING, 1987).

[3] Salvo indicação em contrário, todas as traduções são de nossa autoria.

Referências Bibliográficas

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. São Paulo: Saraiva, 2002.

CARNIO, Henrique Garbellini.Conceitos jurídicos e fantasia: notas sobre o sério e o jocoso no pensamento sociológico da Rudolf von Jhering. 2018 | v. 12 | n. 1 | p. 48-63 | ISSN 2317-2622. http://dx.doi.org/10.5935/2317-2622/direitomackenzie.v12n1p48-63.

DERRIDA, Jacques. Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade. São Paulo: Escuta, 2001.

JHERING. Rudolf von. Bromas y vera en la ciencia jurídica: un presente navideño para los lectores de obras jurídicas. Madrid: Civitas, 1987.

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Autor

  • Doutor e mestre em filosofia do direito e teoria do estado pela PUC/SP. Pós-doutor em filosofia pela UNICAMP. Professor do núcleo de filosofia e teoria geral do direito da Universidade Presbiteriana MACKENZIE. Professor permanente do curso de mestrado e doutorado em direito da Faculdade Autônoma de Direito - FADISP e do curso de mestrado em direito constitucional econômico da UNIALFA

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