“Não temos exatamente uma vida curta mas desperdiçamos uma grande parte dela”, já dizia o célebre filósofo estoico Sêneca, que dedicou parte de seus escritos para pensar a relação do homem com o tempo. Se a vida não é curta, o seu desperdício gera angústia e preocupação. É bom dizer que Sêneca viveu entre 4 a.C e 65 d.C. Uma época marcada pela fragilidade do corpo humano, com a existência de pragas, guerras e pouca evolução das ciências médicas. Imagine se este filósofo vivesse nos tempos atuais. Atravessar países e oceanos em horas. Conversar instantaneamente com alguém a quilômetros de distância. Transações comerciais e financeiras ocorrendo a um “clique”. Informações e dados mais fáceis de serem acessados. Soluções criadas mais rápidas. O cenário atual se apresenta como um locus em que não há desperdício de tempo; e, consequentemente, a vida não é mais breve. O que diria Sêneca sobre o tempo no século XXI?
Ao passo que vemos as relações humanas serem travadas em um curto espaço temporal, e uma nova tônica acelerada imprimida também no ambiente laboral e negocial, tal evolução do relacionamento entre tempo e homem não é constatada facilmente no âmbito do Judiciário Brasileiro. E o que diria Sêneca sobre esta instituição?
Se a conclusão filosófica é no sentido que desperdiçarmos muito tempo de nossa vida – muitas das vezes com assuntos ou problemas insolúveis – talvez fosse melhor nem falarmos mais sobre morosidade judiciária. Tema espinhento que, a longa data, inúmeros pesquisadores buscaram encontrar meios, caminhos para tornarem as soluções da controvérsia jurídica mais céleres.
Já procederam, no Brasil, inúmeras reformas legislativas; ampliação das audiências de conciliação; melhoramento da tecnologia. E ainda nos esbarramos em relatórios de produtividade do Conselho Nacional de Justiça que, mesmo após 6 anos da promulgação de uma nova codificação procedimental, apresenta pouca ou quase nenhuma melhora em seus índices.
João Canóvas Bottazzo Ganancin[1] expõe alguns problemas advindos da morosidade jurisdicional que merecem ser debatidos. O primeiro deles é a falta de confiança dos cidadãos atrelados aos efeitos na economia pela lentidão da justiça, que pode acarretar na imprestabilidade da tutela. Este descrédito associa-se a extensão do emprego das tutelas provisórias em nosso sistema, que passaram a ser regra. Tudo se tornou urgente, e pior, tudo se tornou algo de grave ou de difícil reparação. Em nome da “pressa”, mitigamos cada dia mais o espaço cognitivo, em nome de uma jurisdição sem processo (desprocessualização)[2].
Outro ponto problemático debatido por João Canóvas Bottazzo Ganancin[3] refere-se à aposta do legislador como integrantes do Judiciário nos meios alternativos de solução de conflitos, como se a mediação, conciliação e arbitragem conseguiriam, por si só, reduzirem o volume de processos. É inegável os avanços que apresentamos neste campo específico do processo, contudo, da forma como foi implementada dentro da sistemática processual, com uma infinidade de momentos processuais para que seja oportunizada a autocomposição (art. 334, CPC), “repercutiu de modo negativo, congestionando pautas de audiência e, ironicamente, retardando ainda mais a já demorada entrega da prestação jurisdicional. Não deve ser outra a razão pela qual diversos juízes têm simplesmente ignorado o mandamento legal e expedido mandados de citação já com intimação para contestar”[4].
Tal situação é bem retratada pelo relatório “Justiça em Números” do ano de 2021, que em um quadro comparativo da série histórica do Índice de Conciliação entre os anos de 2015 a 2021, apresenta um singelo aumento nas sentenças homologatórias de acordo. Em 2015, foram 2.987.623 sentenças homologatórias ao passo que em 2021 o total de sentenças foi 3.114.462[5]. Ou seja, passados cinco anos de vigência do Código de Processo Civil de 2015, a promessa de fomentar as práticas autocompositivas não tem se concretizado da forma como idealizado.
Por fim, um terceiro ponto problemático que calha debatermos diz respeito à causa em cima da avalanche de processos submetidos ao Judiciário. Isto é, de onde provém a maioria das demandas? Qual é o maior litigante em nosso país? E a resposta provém de um elucidativo estudo conduzido por Daniel Wunder Hachem. Este autor, cuidou por analisar empiricamente os maiores litigantes dentro do Judiciário, apoiado em dados levantados pelo Conselho Nacional de Justiça. Dentro dos dados coletados, constatou-se que 51% envolvem o Poder Público federal (38%), estadual (8%) e municipal (5%). Considerando as demandas que envolvem a Caixa Econômica Federal (8,5%) e o Banco do Brasil (5,6%), o patamar alcançaria um total de 65,11%.
Esses dados são alarmantes a partir do momento que escancaram que o maior violador de direitos, em nosso país, é o próprio Poder Público, cujo principal dever, na ordem constitucional, é a efetivação de um rol extenso de direitos individuais e sociais.
Daniel Hachem atribui a excessiva quantidade de processos demandados pelo Poder Público como um problema inerente à Administração Pública, e do qual deveria ser solucionado em sua estrutura, e não transferido ao Judiciário. Para o autor, muitas das causas envolvem uma cultura do “medo” vivenciado pelos gestores públicos, que acabam transferindo a responsabilidade aos órgãos jurisdicionais para tomada de decisões que poderiam ser feitas no âmbito administrativo:
“Talvez uma das principais causas que levam o Poder Público e a advocacia pública a negar o reconhecimento espontâneo de direitos postulados pelo cidadão resida na carência de segurança ou coragem de muitos administradores públicos, decorrente do receio que lhes acomete de sofrer um processo administrativo disciplinar ou uma ação de improbidade administrativa. Algo extremamente natural em um momento como o que se vive atualmente no Brasil, no qual se nota na mídia uma verdadeira cultura da suspeita, e na sociedade civil uma forte mobilização popular que levanta vigorosamente a bandeira do combate à corrupção.
Esse clima de suspeição, proveniente de uma abominável tradição brasileira de imoralidade na gestão da coisa pública, acaba tornando necessário identificar no sistema normativo pátrio um fundamento jurídico no qual possam se apoiar os agentes públicos para que os seus atos de reconhecimento de direitos fundamentais, em desfavor dos interesses fazendários da máquina estatal, não sejam tidos como práticas ímprobas ou corruptas”[6].
Se o medo do gestor público de sofrer uma ação de improbidade administrativa ou de lhe ser imputado uma conduta delitiva corrupta o impede de tomar decisões na seara administrativa, deve ser debatido e até mesmo legislado garantias que permitam que o agente público tenha “respaldo jurídico que lhe permita implementar consensualmente os direitos do cidadão, sem o medo de ser sancionado por isso”[7].
Pensar em solução destes três problemas pode corresponder em ganhos qualitativos e quantitativos na gestão de processos jurisdicionais. Se queremos viver bem a vida e queremos respostas mais rápidas aos problemas que somos incapazes de resolver sozinhos, sem auxílio de um árbitro ou um julgador, certo é que precisamos avançar em discussões mais sérias sobre a morosidade, que perpassem não por uma reforma legislativa no sistema processual, porque, como visto, não surtiram maiores efeitos. Discutir, então, sobre morosidade é discutir sobre o gargalho da ineficiência das decisões administrativas tomadas pelo Poder Público que desaguam em números assustadores nos tribunais pátrios. É discutir sobre a falta de servidores públicos no Judiciário. É discutir sobre a falta de recursos materiais dignos para a efetivação da justiça.
Este é apenas um primeiro ensaio sobre o tema. Apenas uma pequena reflexão da dimensão do problema e do que temos em mãos para solucioná-lo. Muito ainda há pela frente. E o principal desejo: que não desperdiçamos mais tempo quando pensarmos na Justiça.
[1] GANANCIN, João Cánovas Bottazzo. Morosidade processual: notas sobre um problema insolúvel. Revista de Processo. Vol. 307/2020. p. 343-358, set. 2020.
[2] ANDRADE, Francisco Rabelo Dourado. A tutela de evidência como jurisdição sem o devido processo legal no Código de Processo Civil de 2015. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Dissertação. 213f. 2016.
[3] GANANCIN, João Cánovas Bottazzo. Morosidade processual: notas sobre um problema insolúvel. Revista de Processo. Vol. 307/2020. p. 343-358, set. 2020.
[4] GANANCIN, João Cánovas Bottazzo. Morosidade processual: notas sobre um problema insolúvel. Revista de Processo. Vol. 307/2020, set. 2020, p. 344.
[5] Para maiores informações quanto aos índices de conciliação em cada órgão jurisdicional e em cada fase procedimental conferir o Relatório Justiça em Números 2021, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça, disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf
[6] HACHEM, Daniel Wunder. Crise do Poder Judiciário e a venda do sofá: o que a Administração e Advocacia Pública têm a ver com isso?. Revista dos Tribunais. Num. 301/2016. Abr/2016.
[7] HACHEM, Daniel Wunder. Crise do Poder Judiciário e a venda do sofá: o que a Administração e Advocacia Pública têm a ver com isso?. Revista dos Tribunais. Num. 301/2016. Abr/2016.