BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O § 1º DO ART. 1.009 CPC – PARTE 1

recurso eventualmente condicionado, nunca subordinado

  1. Considerações iniciais

Nos termos do § 1º do art. 1.009 do CPC, as questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões. Nesta primeira parte, demonstrarei a razão pela qual entendo que a apelação em contrarrazões nunca é subordinada à apelação em razões, mas pode ser condicionada a ela.

 

  1. Impugnação de decisão interlocutória «em preliminar de apelação»

O dispositivo indica que a decisão interlocutória poderá ser impugnada pelo apelante, em «preliminar de apelação». O termo gera três problemas: remete diretamente à ideia de que o seu conteúdo é composto por assunto de admissibilidade; sugere que o apelante sempre impugnará, simultaneamente, a sentença e a decisão interlocutória; insinua que tais assuntos possuem conexão lógica, sendo o da decisão interlocutória antecedente ao da sentença. Vejamos cada um com vagar.

Quanto ao primeiro problema, comumente juristas (teóricos e práticos) e o direito positivo empregam o termo «preliminar» para indicar o lugar de arguição de assuntos de admissibilidade. Daí «preliminar de apelação» remeter à ideia de assunto de admissibilidade do recurso de apelação. Não é este o sentido atribuível ao termo no contexto do § 1º do art. 1.009 do CPC. Ali a parte ataca uma decisão interlocutória, apontando o erro (de julgamento ou de atividade) que justifica o seu reexame (reforma ou invalidação). Trata-se de pedido recursal, mérito da apelação, não «preliminar de apelação».

Quanto ao segundo problema, é perfeitamente possível que a parte apele apenas contra a sentença, apenas contra a decisão interlocutória ou contra ambas. Tome-se como base esta hipótese: A pede a condenação de B a pagar 100 e, no curso do processo, não comparece à sessão de conciliação (art. 344, CPC). Sendo o pedido julgado improcedente e relevada a ausência à sessão de conciliação, A terá interesse em apelar contra a sentença, mas não contra a decisão interlocutória que afastou o ato atentatório à dignidade da justiça. Sendo o pedido julgado procedente e rejeitada a justificativa apresentada para a ausência à sessão de conciliação, aplicando-se a multa por ato atentatório à dignidade da justiça, A não terá interesse em apelar contra a sentença, mas, sim, contra a decisão interlocutória. Sendo, por fim, julgado improcedente o pedido e rejeitada a justificativa para a ausência à sessão de conciliação, A terá interesse para apelar tanto contra a sentença quanto contra a decisão interlocutória.

Quanto ao terceiro problema, a relação de antecedência lógica entre o assunto decidido na decisão interlocutória e o assunto decidido na sentença é meramente eventual, não necessário. Haverá tal relação quando a decisão interlocutória for de indeferimento da produção de determinado meio de prova e a sentença for de improcedência do pedido em razão justamente do indeferimento daquele meio de prova. Não haverá tal relação quando a decisão interlocutória for por indeferimento do motivo apresentado para elidir a multa por não comparecimento à sessão de conciliação e a sentença for de improcedência do pedido por falta de provas. Nos dois exemplos será lícito à parte interpor apelação contra a decisão interlocutória e contra a apelação. E mesmo quando houver vínculo de precedência lógica entre os assuntos decididos na interlocutória e na sentença, ambos impugnados na apelação, eventual má-técnica na sua ordenação na petição de recurso tampouco poderá acarretar inadmissibilidade.

Em suma, a impugnação de decisão interlocutória na apelação: nunca tem natureza de preliminar de apelação no sentido de assunto de admissibilidade recursal; nem sempre será realizada cumulativamente à impugnação da sentença; nem sempre, havendo tal cumulação, veiculará questão logicamente antecedente. De modo que nada nada justifica a escolha do termo «preliminar de apelação» para aludir à impugnação de assunto resolvido em decisão interlocutória.

 

  1. Impugnação de decisão interlocutória em contrarrazões de apelação

A postulação recursal se realiza em contraditório. Quando uma parte recorre a outra tem a oportunidade de responder. Fala-se que o recurso é interposto em «razões recursais» e a resposta ao recurso, em «contrarrazões recursais». O primeiro sugere alguém que se insurge contra uma decisão; o segundo, a reação de quem resiste a tal insurgência – ação recursal ali, defesa recursal aqui. Mutatis mutandis, as «razões recursais» estão para o recorrente assim como a petição inicial está para o autor, já as «contrarrazões recursais» estão para o recorrido assim como a contestação está para o réu.

O § 1º do art. 1.009 do CPC não pode ser interpretado neste sentido. Intimado para contra-arrazoar, abrem-se três possibilidade ao apelado – além de permanecer inerte: apenas resistir à pretensão recursal (defesa), apenas atacar uma decisão interlocutória de recorribilidade mediata (ação) ou fazer as duas coisas (defesa e ação). Grosso modo, assim como o réu, citado, pode, além de ficar inerte, apenas contestar (defesa), apenas reconvir (ação) ou fazer as duas coisas (ação e defesa). Assim, no âmbito da apelação o termo «contrarrazões recursais» não está associado apenas ao conteúdo de defesa recursal, de resistência ao recurso de outrem; também pode veicular o conteúdo de ação recursal, de impugnação a uma decisão interlocutória de recorribilidade mediata.

Em suma, pode-se apelar contra uma decisão interlocutória de recorribilidade mediata tanto em razões como em contrarrazões de apelação. O termo «contrarrazões de apelação» tem sentido formal invariável (é o nomen iuris da peça mediante a qual o recorrido se manifesta) e sentido conteudístico variável (pode veicular apenas resistência ao recurso do adversário, apenas ataque a uma decisão interlocutória ou as duas coisas).

  1. Relações (in)existentes entre a apelação em razões e a apelação em contrarrazões

Entre a apelação em razões contra a sentença e a apelação em contrarrazões contra a decisão interlocutória nunca há relação de subordinação, mas pode haver relação de condicionamento. Explico o que entendo por recurso subordinado e recurso condicionado, extremando seus conteúdos e efeitos[1].

 

4.1. Recurso subordinado e recurso condicionado

A relação de subordinação consiste na condição legal de exame de uma postulação (realização do juízo de admissibilidade) ao prévio conhecimento de outra postulação (juízo de admissibilidade positivo). O exame do recurso subordinado está condicionado ao prévio conhecimento do recurso subordinante. Assim: não conhecido o recurso subordinante, não se examina o recurso subordinado; conhecido o recurso subordinante, examina-se o recurso subordinado.

A admissibilidade do recurso subordinante depende apenas do atendimento dos seus próprios pressupostos recursais. O conhecimento do recurso subordinado depende do conhecimento do recurso subordinante mais do atendimento dos seus próprios pressupostos recursais.

O recurso subordinado é disciplinado nos §§ 1º e 2º do art. 977 do CPC. Os termos acima colocados de relação de subordinação entre o recurso subordinante e o recurso subordinado constam do inciso III do § 2º do dispositivo.

A relação de subordinação deriva de vínculo jurídico-positivo, depende de previsão legal. Presentes os elementos da hipótese da regra instituidora da relação de subordinação, ela incide sem a consideração de qualquer especificidade do caso concreto. Não é nada sofisticada a razão por que o não conhecimento do recurso subordinante acarreta, por si só, o não exame do recurso subordinado: isso se deve exclusivamente à existência de previsão legal nesse sentido. Nada mais, nada menos.

Veja-se o seguinte exemplo: A pede a condenação de B ao pagamento de 100; sentença julga parcialmente procedente, concedendo 70; A apela pedindo a reforma da sentença, para obter 100; B apela, de maneira subordinada, pedindo a reforma da sentença para pagar 40. Em tal caso: conhecido e provido o recurso de A, fica prejudicado o recurso de B; conhecido e rejeitado o recurso de A, examina-se o recurso de B; não conhecido o recurso de A, não se examina o recurso de B.

A relação de condicionamento, por outro lado, consiste no liame de implicação lógica entre vários assuntos, em razão do qual o exame de um (assunto condicionante) define se ou como o outro (assunto condicionado) deve ser decidido. A relação de condicionamento independe de previsão legal expressa. Seu critério é estritamente lógico e deriva da dinâmica concreta da interação dos assuntos postos para julgamento.

Sistematicamente, são estas as possíveis interações decorrentes da relação de condicionamento: não conhecido o recurso subordinante, examina-se o recurso subordinado, que pode ser conhecido ou não, provido ou não; conhecido e desprovido o recurso subordinante, examina-se o recurso subordinado, que pode ser conhecido ou não, provido ou não; conhecido e provido o recurso subordinante, não se examina o recurso subordinado, que perde o objeto. O resultado obtido no recurso condicionante toca o pressuposto recursal do interesse-utilidade do recurso condicionado.

Veja-se o seguinte exemplo: A pede declaração de paternidade e alimentos de 100 em face de B; o juiz declara a paternidade e fixa alimentos em 70; A apela pedindo reforma da sentença para receber alimentos no valor de 100 e B apela pedindo a reforma da sentença para que se declare que ele não é pai. A relação de paternidade é assunto prévio ao da majoração de alimentos, daí a apelação de B dever ser examinada antes da apelação de A. Assim: não conhecida a apelação de B, examina-se a apelação de A; conhecida e desprovida a apelação de B, examina-se a apelação de A; conhecida e provida a apelação de B, não se examina a apelação de A.

Assim, só se justifica o exame do recurso condicionado se antes não for conhecido ou não for provido o recurso condicionante. A contrario sensu, se for dado provimento ao recurso condicionante, faltará interesse no exame do recurso condicionado.

 

4.2. Breves considerações sobre as questões prévias: questões preliminares e questões prejudiciais; recurso condicionado e recurso independente.

A razão por que a apelação em contrarrazões contra interlocutória de recorribilidade mediata (art. 1.009, § 1º, CPC) jamais é subordinada à apelação em razões é muito simples: inexiste prescrição legal neste sentido.

O art. 1.009, § 1º, CPC, admite que a apelação contra interlocutória de recorribilidade mediata seja interposta em razões ou em contrarrazões, mas não preceitua que o não conhecimento da apelação em razões impede o conhecimento da apelação em contrarrazões. Nada indica que o não conhecimento da apelação em razões é razão bastante para o não conhecimento da apelação em contrarrazões, diferentemente do que se dá com o recurso adesivo, como se vê do art. 997, § 2º, III, CPC. Qualquer que seja a via interpositiva eleita (razões ou contrarrazões), é sempre recurso independente.

Mas os assuntos vertidos na apelação em razões e na apelação em contrarrazões eventualmente podem ter alguma relação de condicionamento, ou seja, a apelação em contrarrazões pode ser condicionada à apelação em razões. Isso ocorrerá quando o interesse-utilidade no julgamento da apelação somente se concretizar como provimento da apelação em razões. A apelação em razões versa questão prévia àquela suscitada na apelação em contrarrazões, relação de condicionamento especificamente preliminar – o resultado do assunto prévio versado no recurso condicionante (=apelação em razões) cria ou remove obstáculo ao exame do recurso condicionado (=apelação em contrarrazões). Assim: não conhecida a apelação em razões, faltará interesse-utilidade para o exame da apelação em contrarrazões; conhecida e não provida a apelação em razões, igualmente faltará interesse-utilidade para o exame da apelação em contrarrazões; conhecida e não provida a apelação em razões, haverá interesse para o exame da apelação em contrarrazões.

Havendo relação de subordinação o não conhecimento do recurso subordinante provoca, per se, o não conhecimento do recurso subordinado, mas isso não significa inexistência de interesse-utilidade no provimento do recurso subordinado. Isso porque, na relação de subordinação a questão do interesse-utilidade do recurso subordinado é completamente irrelevante.

Para ficar mais claro, imagine esta situação: A pede a condenação de B a pagar 100; B é condenado a pagar 60; A apela independentemente (recurso subordinante) pedindo a reforma da sentença para majorar a condenação até 100 e B apela adesivamente (recurso subordinado), pedindo a reforma integral da sentença para nada ter de pagar. Nesse caso, não há dúvida de que é mais vantajoso para B não pagar nada do que pagar 60, porém a lei prescreve que o não conhecimento do recurso de A impede o exame do recurso de B.

 

  1. Considerações finais

Um recurso pode impedir o exame de outro pelo simples fato de não ser conhecido (relação de subordinação) ou pelo fato de o seu resultado tolher do outro qualquer possibilidade de o seu julgamento resultar em vantagem prática superior à que se encontra (relação de condicionamento). A relação de subordinação entre recurso subordinante/independente e recurso subordinado é gerada por um vínculo jurídico-positivo. A relação de condicionamento entre recurso condicionante e recurso condicionado é gerada por um vínculo lógico.

A apelação em contrarrazões contra decisão interlocutória de recorribilidade mediata nunca é subordinada à apelação em razões. Quando o assunto versado na apelação em razões seja logicamente antecedente ao vertido na apelação em contrarrazões, haverá entre eles relação de condicionamento, caso em que o não conhecimento do primeiro impedirá o exame do segundo, por ausência de interesse-utilidade.

Em suma, todo recurso adesivo é subordinado – aliás, recurso adesivo e recurso subordinado são termos sinônimos. A apelação em contrarrazões do § 1º do art. 1.019 do CPC jamais será subordinada à apelação em razões, mas pode, eventualmente, ser condicionada ao provimento dela.

O tema é disputado na doutrina, porém. A segunda parte do ensaio será dedicada ao diálogo com seus argumentos.

[1]   Convém aclarar que os significantes “recurso subordinado” e “recurso condicionado” não serão empregados (nem devem ser interpretados) como bastantes, por si sós, para as consequências aqui indicadas. Fosse assim tudo não passaria de conceitualismo ou mero jogo semântico, incapaz de solucionar as questões que se pretende enfrentar. Destarte, os termos são utilizados apenas como pontes significativas para os critérios distintivos das espécies de vínculo de afetação de um recurso sobre outro. São recursos mnemônicos, pois. No processo (rectius, procedimento) civil brasileiro um recurso pode ser afetado por outro por força de elo jurídico-positivo (=exclusivamente por previsão de lei) ou de elo lógico (=independentemente de lei). Assim, talvez fosse possível falar em “relação de afetação jurídico-positiva” (ao invés de simplesmente “relação de subordinação” ou “recurso subordinado”) e “relação de afetação lógica” (ao invés de simplesmente “relação de condicionamento” ou “recurso condicionado”). Não se trata de escolha totalmente arbitrária, porém. Preferiu-se extremar a relação de subordinação e da relação de condicionamento porque o CPC emprega o termo recurso subordinado em sentido bem específico e diverso daquele que aqui se quer dizer com o significante recurso condicionado. Trata-se de escolha metodológica para tentar facilitar a compreensão dos vínculos de afetação aqui explicitados. Por isso se fala em “relação de subordinação” e “recurso subordinado” e em “relação de condicionamento” e “recurso condicionado”. É com isso em conta que se deve interpretar o uso de “recurso subordinado” e “recurso condicionado”.

Autor

  • Mestre em direito processual pela Universidade Federal do Espírito Santo. Conselheiro da Associação Brasileira de Direito Processual. Parecerista ad hoc da Revista Brasileira de Direito Processual. Professor do curso de direito das Faculdades Integradas de Aracruz-ES. Advogado.

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