“Diante dos portões da cidade e ao lado da lareira, eu os vi prostrados em adoração à própria liberdade. Como escravos que se humilham perante um tirano e o aplaudem mesmo que este os mate. Sim, tanto no bosque do templo quanto à sobra da fortaleza, vi os mais livres entre vocês permitirem que a própria liberdade fosse o jugo e as algemas.”
(GIBRAN, Khalil. O profeta. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019).
Há, no ordenamento jurídico brasileiro, normas cujo alojamento topográfico faz lembrar aquela pecinha de quebra-cabeça metida de qualquer jeito num espaço que não é dela. É, grosso modo, como ouvir que girafas habitam a floresta amazônica, ou que Fiódor Dostoiévski está entre os mais capacitados jogadores de críquete de todos os tempos. Ou ainda que juízes têm competência para, ex officio, instaurar e liderar investigações criminais.
Erros e ou deslizes tolos são, no mais das vezes, desprezados. Acabam ridicularizados, ou entram na conta da falibilidade humana: ninguém é perfeito, de modo que é impossível acertar sempre. O problema ganha relevo, porém, quando a imprecisão legislativa é difundida com ares de benignidade, defendida, incrementada e aplicada por setores autorizados: de pouco em pouco vai se naturalizando até se tornar, enfim, quase que invisível no entremeio de camadas e camadas de doutrina e decisões judiciais.
É esse o caso do art. 5o do CPC/2015: está mal situado, ou seja, o legislador equivocou-se absurdamente ao incluí-lo entre as chamadas “Normas Fundamentais do Processo Civil”, as quais deveriam circunscrever-se ao regramento das garantias contrajurisdicionais do processo. Indo ao ponto: a boa-fé processual de maneira nenhuma se relaciona à matriz constitucional do devido processo legal, não possui a fundamentalidade que lhe pretendeu emprestar o legislador infraconstitucional – empréstimo, diga-se de passagem, feito por via oblíqua, uma vez que a criação de normas fundamentais apenas se dá pelo labor do poder constituinte.
O empreendimento nada tem de imaculado e traz implicações de ordem prática assaz negativas. Atribuir nomes errados às coisas, tratando-as a partir de uma relevância distanciada da sua essência, vale dizer, chamar de fundamental norma de cariz puramente procedimental só acarreta toda sorte de vulgarizações de garantias constitucionais, piruetas interpretativas, ponderações amalucadas, perda do senso de hierarquia das fontes de Direito e ausência de previsibilidade.
Dois exemplos, ambos extraídos de julgados do Superior Tribunal de Justiça, permitem avançar do plano abstrato da doutrina para o atingimento de contornos concretos ligados à denúncia aqui formulada. Causou assombro o prestígio que o Tribunal da Cidadania atribuiu à boa-fé processual no REsp 1.789.913/DF,[1] encarando-a (sem exagero) como espécie de sobrenorma, a ser observada não meramente na arena procedimental-jurisdicional, mas pelo próprio legislador na tarefa de criação de leis. Em suma, essa novíssima versão jurisdicionalista ultraturbinada da boa-fé processual almeja obstar a superação de orientação jurisprudencial consolidada e o (suposto) atentado à independência dos Poderes.
Tem-se, aí, por óbvio, mais um daqueles exageros retóricos “vanguardistas”. Nem é preciso ir longe: uma leitura despretensiosa do art. 5º do CPC/2015 leva à conclusão fácil de que o espectro de incidência da norma está limitado ao procedimento jurisdicional (“Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”). De resto, inexiste malferimento à independência dos Poderes na atuação de parlamentares que decidem legislar em oposição à jurisprudência firme. Nada em absoluto impede que deputados e senadores – muito pelo contrário, aliás – insurjam-se contra os rumos tribunalísticos a fim de construir regramentos legais que melhor atendam interesses daqueles que democraticamente os elegeram.
Em outra ocasião, o Superior Tribunal de Justiça (Recurso em Habeas Corpus n. 99.606-SP)[2] validou medidas coercitivas indiretas adotadas por um juiz de base em prejuízo manifesto ao devido processo legal. Segundo o posicionamento ali exarado, ao executado não é suficiente – haja vista o disposto no parágrafo único do art. 805 do CPC/2015 – alegar a invalidade de atos executivos gravosos, cabendo apresentar outrossim proposta de adimplemento da obrigação que lhe seja menos onerosa e, por seu turno, mais eficaz à satisfação do crédito exequendo. Acontece que a decisão atacada, ademais de não fundamentada, distinguia-se pela surpresa. Preferiu-se, mesmo assim, supervalorizar boa-fé e cooperação processual em franco desdém à fundamentalidade que caracteriza contraditório e dever de fundamentação. Deu-se, em resumo, um alcance ao parágrafo único do art. 805 do CPC/2015 que ele jamais poderia ter,[3] fazendo com que regras de natureza infraconstitucional vencessem a Constituição – a última foi interpretada à luz das primeiras, e não o contrário, isto é, o velho, conhecido e infelizmente usual gesetzkonforme Verfassungsinterpretation.
Nunca é demais lembrar alerta feito por conceituada voz doutrinária (pouco ouvida e até desprezada no Brasil) sobre a relação político-ideológica existente entre regimes totalitários (comunistas, fascistas e nazista) e alguns modismos legislativos (= boa-fé processual, cooperação processual e ampliação de poderes judiciais em busca da “verdade real”).[4] Legislar, teorizar e aplicar o direito em atenção à lógica da hierarquia normativa é tema ligado ao Estado de Direito brasileiro – hoje tão combalido, definhado e repleto de mossas – e a mantença daquilo que resta de seus alicerces. Naquilo que interessa: prestar homenagem à boa-fé processual para além da substancialidade constitucional do devido processo é, para dizer pouco, ministério imprudente, que empodera o Judiciário e subverte arbitrariamente a liberdade de litigância das partes (e de seus advogados).
A insegurança jurídica agradece!
[1] É o que se lê no voto de relatoria: “Dessa forma, a regra do art. 85, §8º, do CPC/2015, deve ser interpretada de acordo com a reiterada jurisprudência do STJ, que havia consolidado o entendimento de que o juízo equitativo é aplicável tanto na hipótese em que a verba honorária se revela ínfima como excessiva, à luz dos parâmetros do art. 20, §3º, do CPC/1973 (atual art. 85, §2º, CPC/2015). Conforme bem a apreendido no acórdão hostilizado, justifica-se a incidência do juízo equitativo tanto na hipótese do valor inestimável ou irrisório, de um lado, como no caso da quantia exorbitante, de outro. Isso porque, observo, o princípio da boa-fé processual deve ser adotado não somente como vetor na aplicação das normas processuais, pela autoridade judicial, como também no próprio processo de criação das leis processuais, pelo legislador, evitando-se, assim, que este último utilize o poder de criar normas com a finalidade, deliberada ou não, de superar a orientação jurisprudencial que se consolidou a respeito de determinado tema.” (STJ, REsp 1.789.913, 2ª Turma, rel. Min. Herman Benjamin, julgamento: 12/02/2019, disponível em: www.stj.jus.br).
[2] STJ, RHC 99606, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, julgamento: 13/11/2018, disponível em: www.stj.jus.br.
[3] Veja-se o teor do art. 805, caput e parágrafo único, do CPC/2015: “Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado. Parágrafo único. Ao executado que alegar ser a medida executiva mais gravosa incumbe indicar outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados.” O acórdão citado baralhou questões de ordem hierárquica distintas – nulidade de decisão por menosprezo ao devido processo e desconsideração ao disposto no parágrafo único do art. 805 do CPC/2015 –, o que culminou na validação, com justificativas enraizadas em regras infraconstitucionais, de uma decisão judicial ofensiva à Constituição Federal. Criou-se, no fundo, uma condicionante absurda (não prevista em lei e inconstitucional): os argumentos de defesa em sede de cumprimento de sentença, que estiverem fundados em lesão ao devido processo legal, só serão enfrentados pelo Judiciário se o executado cumprir o disposto no parágrafo único do art. 805 do CPC/2015. E vale insistir: carecem de legitimidade posturas “interpretativas” com enfoque progressista (ou coisa que o valha), que apostam em rumos decisórios descompromissados com o direito legislado, seja por discordância pessoal dos valores nele embutidos, seja pelo fato de o intérprete atribuir-lhe compreensão desatenta às minudências decorrentes de sua totalidade. Não é legítimo o uso do poder judicial com fins de promover “revoluções humanistas” ou implementar, à moda do custe o que custar, uma cultura de adimplemento. Atuando assim, o Judiciário se deslegitima, extrapola limites legais e constitucionais, age de maneira discricionária (= ativismo judicial). É o diagnóstico constatado pela leitura do acórdão: uma postura judicial ativista-discricionária, alheia às complexidades do ordenamento jurídico e, portanto, ilegal (= transposição de sanção criminal para um procedimento executivo no âmbito civil; pouco-caso ao regime caracteristicamente típico e sub-rogatório das execuções para pagamento em dinheiro; ausência de nexo entre meio e finalidade das medidas restritivas impostas) e inconstitucional (= afronta às garantia da liberdade de locomoção, da legalidade estrita em matéria penal, do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais e, por fim, ao devido processo cujo respeito se impõe para a aplicação de sanções punitivas).
[4] AROCA, Juan Montero. Proceso Civil e Ideologia: Un prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos. 2ª ed. Sobre el mito autoritário de la “buena fé procesal”. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011. pp. 292-352.
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