O indivíduo que desce às ruas com o rosto pintado de verde e amarelo, bradando pegajosos refrãos ao som de panelas-matracas, por mais que possa sentir na pele um certo grau de ufanismo, não está performando qualquer atitude juridicamente democrática. Pelo contrário, cuida-se de um sintoma da angústia – a “passage à l’acte”[1] – que o assola pela mordaça que lhe fora colocada por um sistema representativo que limita sua participação jurídico-política ao simples ato do voto (uma escolha sobre quem deve governar)[2]. Ora, se um cidadão precisa levar-se ao extremo de bater uma panela para ser efetivamente ouvido na tomada das decisões de seu país, ele definitivamente não vive em um Estado Democrático de Direito, mas sim em uma espécie de barbárie onomatopaica.
É que, sem a possibilidade de participação e fiscalização incessantes das contingências políticas após o período eleitoral, o voto torna-se uma entrega dos caminhos jurídico-políticos ao subjetivismo de alguns seletos representantes. Ou seja, o voto como instrumento isolado da democracia implica nada mais do que uma escolha de quem serão os novos ditadores[3]. Ocorre que, em uma democracia, os representantes não decidem os destinos da nação – quem o faz é (ou deveria ser) o Povo[4], entendido como o conjunto de legitimados difusos às decisões político-jurídicas do país, a serem tomadas em espaços procedimentais processualizados, disponíveis e acessíveis a qualquer Cidadão nas funções legislativa, executiva e judicial da estatalidade.
Assim como a procuração ad judicia não significa a transferência da legitimação da parte ao seu procurador em um procedimento judicial, a representação política ratificada pelo voto não implica uma transferência da legitimatio do Cidadão para seu representante em um procedimento legislativo para que decida os destinos da nação em seu nome. Significa, lado outro, somente uma escolha funcional (quem desempenhará uma função pública), isto é, o que ocorre é uma escolha de representação, não uma transferência da legitimação.
Mesmo porque, quem sofre os efeitos dessas decisões é o Povo, que, em uma democracia – pelo menos em teoria – haveria de ser simultaneamente destinatário e coautor das decisões normativo-jurídicas que lhe atinjam.[5]
Ora, a única diferença entre um sistema ditatorial e uma democracia representativa sem participação e fiscalidade populares após o período eleitoral (durante o processo legislativo) é que nesta o povo escolhe quem será o seu ditador. No entanto, a escolha dos representantes pelo povo não significa uma transferência ou uma outorga de poderes de decisão (poderes estes que são inalienáveis)[6].
Inclusive, o parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal de 1988 dispõe que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”[7]. Perceba-se que, de acordo com o artigo, é o Povo quem exerce o poder, sendo a representação um mero meio para possibilitar esse exercício de poder. Todavia, cotidianamente, nota-se que o que ocorre é exatamente o contrário: o representante exerce o poder, e o Povo é um meio (instrumento) para a consecução ou manutenção desse poder.
Mesmo porque, se a política é a arte de gestão de interesses, como pode o representante político gerir interesses que simplesmente desconhece (interesses nunca expressados processualmente)? O voto é suficiente para congregar todos esses interesses em um único sujeito eleito, como se fosse, ele próprio a convergência alegórica dessas pretensões?[8]
Pois, sem o exercício da fala processual, da manifestação formal e jurídica de interesse pelos legitimados, é mundanamente impossível ao representante saber quais são os anseios dos seus representados. É impossível dizer algo em nome de alguém que simplesmente nunca disse nada. É justamente por isso que a legitimatio, na processualidade democrática, é garantia que consiste na vedação de que alguém fale processualmente em nome de outrem em qualquer espaço funcional estatal (legislativo, judicial ou executivo).[9]
Assim, é possível concluir que todo procedimento legislativo conta com legitimados difusos (e representantes funcionais eleitos), motivo pelo qual exige a possibilidade de participação e fiscalização direta dos potenciais interessados (qualquer um do povo) na construção discursiva do enunciado normativo-jurídico, sob pena de lesão ao devido processo legislativo e, por conseguinte, de não aquisição do status de direito pela única via legítima segundo a Constituição: a via democrática.
É óbvio, portanto, que resta ao direito processual a tarefa de funcionar como “um motor central para a democratização da representação”[10], a partir de uma releitura da procedimentalidade legiferante sob uma ótica efetivamente compromissada com a com a “plebiscitarização difusa e continuada”[11] das decisões legislativas de uma sociedade, apta a garantir um iter procedimental aberto à perpétua fiscalidade e participação dos legitimados difusos (povo) para a construção e consolidação da norma jurídica (lei) como coisa julgada constitucional e democraticamente legítima.
Só assim, ao efetivamente expressar seus interesses, como legitimado ao procedimento legislativo em um espaço público processualizado (e não no espaço nu das ruas ou das redes sociais), é que o Povo poderá livrar-se da censura da representação e, de fato, assumir as rédeas de seu destino como partícipe-construtor de sua realidade político-jurídica e não como um reles ícone[12] destinatário das decisões alegoricamente tomadas pelos seus representantes.
Mesmo porque, se a história da política em nível mundial tem algo a demonstrar, é que os interesses que efetivamente prevalecem nas realizações políticas do momento legislativo em praticamente nada coincidem com aqueles interesses que são entoados a toda eloquência nos discursos políticos do momento pré-eleitoral, culminando, muitas vezes, em marcos normativos que – ao invés de traduzirem as reais pretensões populares – funcionam como verdadeiros símbolos[13] amenizadores dessas pretensões.
Daí a eminente necessidade de adoção de uma teoria do processo realmente compromissada com o status democrático do direito e de técnicas processuais que sejam compatíveis com a implementação de um procedimento legislativo compatível com o paradigma democrático (desde o seu nível instituinte)[14], que não deposite os destinos da nação nas escolhas subjetivas dos representantes, mas sim na possibilidade de fala processual incessante (manifestação de interesse) pelos legitimados difusos, a atuarem diretamente (participação-fiscalização) na construção discursiva das decisões normativo-jurídicas das quais serão destinatários, propiciando a “fundação de uma sociedade de falantes e não de falados.”[15]
[1] O sentido da expressão é psicanalítico (Lacan): Diante da angústia da impotência em não gozar de meios processuais para exercer a fala em uma sociedade democrática, ao Cidadão somente resta o apelo ao ato, a “passagem ao ato”, ao ir para as ruas em manifestações políticas que visam simbolizar um pleito de atendimento com relação às suas angústias e seus anseios. (LACAN, Jaques. O Seminário, livro 10 – A Angústia (1962-3/2005). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor).
[2] O raciocínio esboçado segue a lógica de Popper, para quem a tradicional pergunta da teoria política sobre quem deve governar deve ser superada por outra, sobre como fiscalizar os escolhidos para governar: “Isso é muito interessante, pois tais perguntas contém um espírito claramente autoritário. Podem ser comparadas àquela pergunta tradicional da teoria política, “Quem deve governar?”, a qual pede uma resposta totalitária, como “os melhores, “os mais sábios”, “o povo” ou “a maioria”. (Aliás, ela sugere alternativas tolas, como “Quem deve nos governar: os capitalistas ou trabalhadores?”, análoga a “Qual é a fonte suprema de conhecimento: o intelecto ou os sentidos?”) Essa pergunta política está mal formulada e as respostas que suscita são paradoxais. Deveria ser substituída por uma pergunta completamente diferente, do tipo “Como podemos organizar nossas instituições políticas para que governantes ruins ou incompetentes (que deveríamos procurar não ter, mas que, mesmo assim, provavelmente teremos) não possam causar estragos demais?” Só modificando a pergunta dessa maneira poderemos avançar para uma teoria sensata das instituições políticas.” (POPPER, Karl Raimund, Sir. Popper: Textos escolhidos. Organização e tradução David Miller, tradução Vera Ribeiro, Rev. Cesar Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010 p.50).
[3] O trecho de Alexandre de Moraes, em famosa obra, ilustra a equivocada, deturpada e despótica noção de que a escolha de representantes a estes transfere o poder decisional do povo: “o povo escolhe seus representantes, que, agindo como mandatários, decidem os destinos da nação.” (MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 15ª ed. – São Paulo: Atlas, 2004, p. 60).
[4] A concepção jurídica de Povo aqui trabalhada é a de povo como “conjunto de legitimados ao processo”, conjecturada na teoria neoinstitucionalista do processo, de Rosemiro Pereira Leal. (LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. Belo Horizonte: Editora Arraes, 2013 p. 84).
[5] A noção de povo como destinatário e coautor do direito democrático é amplamente conhecida pela teoria habermasiana, in verbis: “na medida em que o sistema de direitos assegura, tanto a autonomia pública quanto a privada, ele operacionaliza a tensão entre facticidade e validade, que descrevemos inicialmente como tensão entre a positividade e a legitimidade do direito. Ambos os momentos unem-se, no cruzamento recíproco entre forma do direito e princípio do discurso, inclusive na dupla face de Janus, que o direito volve, de um lado, para seus destinatários, de outro lado, para seus autores.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volume I, p 166-167).
[6] Em Dhenis Cruz Madeira: “O exercício de tal poder é atributo inalienável e insuprimível de seu dimanante (povo), o qual, ainda quando expressa sua vontade soberana por meio de representantes, possui o direito de fiscalizar as formas de manifestação e aplicação de tal poder, expondo-se às consequências da perda de legitimidade democrática.” (MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento e cognição: uma inserção no estado democrático de direito. 1ª ed. 3ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2014 p. 22.
[7] CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
[8] O processualista Vicente de Paula Maciel Júnior, ao romper com as noções tradicionais de Ihering, apresenta proposta inovadora, ao asseverar que interesse nada mais é do que “manifestação de um sujeito em face de um bem”, de modo que é “falaciosa a afirmação de que existem interesses coletivos e que eles representam a reunião de fins comuns.” (MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas.São Paulo: LTr, 2006 p.152).
[9] Já trabalhamos mais especificamente a legitimatio ad causam sob esse prisma em outra obra. (CARVALHO, João Carlos Salles de. Pedagogia judicial e processo democrático: a fala processual como exercício de cidadania. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 187-201).
[10] URBINATI, Nadia. O que Torna a Representação Democrática. Apresentado no Encontro Anual da American Political Science Association (APSA), Washington (EUA), setembro de 2005. Tradução de Mauro Soares. In: Lua Nova [online]. 2006, n 67, pp. 191-228. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n67/a07n67.pdf> Acesso em 22 de abril de 2016 p. 192.
[11] WALTER, Carlos. Discurso jurídico na democracia: processualidade constitucionalizada. Belo Horizonte: Fórum, 2008 p. 57.
[12] MÜLLER, Friedrich Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Trad. Peter Neumann. Rev. Paulo Bonavides. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2003 p.65-73;
[13] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994.
[14] LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como Teoria da Lei Democrática. Fórum: 2010
[15] LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como Teoria da Lei Democrática. Forum, 2010 p. 60.