Mateus Costa Pereira[2]
Temos dito que processo não é instrumento, ferramenta ou utensílio da jurisdição. Dito, e com alguma instência repetido, que chamar algo de instrumento é falar mais (ou apenas) sobre as preferências do sujeito que, propriamente, acerca do objeto manuseado. Aliás, com alguma dose de estímulo ou complacência ao assujeitamento da coisa, seguida da esperança ou fé no sujeito para que faça bom uso dela. A lição de Freud não poderia ser mais pertinente: «Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais sobre Pedro que sobre Paulo.» Sempre que um instrumentalista me fala sobre processo… E os problemas do instrumentalismo não param por aí.
Além do percalço epistemológico desnudado acima, o instrumentalismo tem problemas filosóficos e carece de sustentação dogmática no Brasil.[3] Nada obstante, é possível dissertar um «paradigma instrumentalista» enquanto modelo teórico anterior ao eficientismo processual (também conhecida por fase teleológica ou «instrumentalidade do processo»). Enquanto um paradigma, pode ser visualizado metaforicamente como um «guarda-chuva» em que algumas teorias e doutrinas buscam se abrigar. Nessa toada, conquanto preceda o eficientismo, o instrumentalismo também lhe perpassa. No último caso, em vista da insistência de teorias e/ou doutrinas nas mesmas premissas inconsistentes professadas pelo instrumentalismo; que tencionam superá-lo, mas se limitam a tensioná-lo, sem abandonar sua sombra.[4]
Muito embora seja concepção epistemologicamente esquálida, marcada por outras sensíveis inconsistências já em nível teórico,[5] o compromisso com o direito posto escancara a mera idealidade da doutrina instrumentalista no Brasil: a visão do processo como instrumento esbarra (e desfalece) na dogmática constitucional; não há elemento da Constituição Federal que autorize a conclusão do processo como instrumento jurisdicional; o texto normativo tampouco oferta sustentação à tese dos escopos (sociais, políticos e jurídicos), necessária e adjeta à redução do processo a utensílio.[6]
Como há muito denunciado por Aroldo Plínio Gonçalves, a assunção dos escopos comprometeria a autonomia do Direito (calcado no código lícito/ilícito), visto que seria indispensável pressupor três ordens normativas concomitantes à consideração do aplicador (social, política e jurídica).[7] No ponto, é digno de nota que os entusiastas da instrumentalidade (fase) estimulam a contaminação da decisão por fatores estranhos ao direito (alopoiéticos), dando vazão a toda sorte de subjetivismos. Arrojadada, a «instrumentalidade do processo» em Cândido Rangel Dinamarco, principal fautor no Brasil, pretende-se tanto uma teoria do processo quanto uma teoría da decisão.[8]
O paradigma instrumentalista também colide com a Convenção Interamerica de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), do qual o Brasil não apenas é signatário, mas por força do art. 5º, § 2º, CF/1988, sabido que seus preceitos têm status supralegal. A tese de que o processo seja adendo da jurisdição também não se socorre do Pacto.
Muito bem. As colocações anteriores não negam que o processo possa ser conformado a instrumento da jurisdição em outras ordens jurídicas; eventualmente, instrumento predisposto aos cidadãos pela ordem estatal. Consorciado a outros fatores, é o que se admite em países de tradição jurídica diversa do embrião do processo como garantia lançado – de maneira ainda rudimentar – pela Magna Charta de 1215, largamente desenvolvido nos séculos posteriores.[9] Como é intuitivo, há espesso tecido histórico à positivação do «devido processo» no rol das garantias individuais de liberdade.[10]
Sobre ser fruto de compromisso hermenêutico ao texto da CF/1988 – o texto deve falar antes que falemos algo sobre ele (Gadamer) –, a premissa de que o processo não se reduz a instrumento transcende a dimensão teórica-conceitual. Minimamente, dela (premissa) são extraídas lições fundamentais à compreensão do direito processual, dos traços básicos que lhe distinguem do procedimento, tanto quanto de alguns limites externos ao exercício da jurisdição. Não fosse suficiente, cuida-se de postura básica para que seja aquilatado o «modelo de processo» vigente em nosso país; destarte, também o horizonte à compreensão das demais garantias contrajurisdicionais, demarcando fronteiras àquilo que não integra esse universo. É o último ponto que atrai nossa atenção no momento.
Se o processo é garantia e não instrumento, em uma «Teoria Geral do Processo» (sic.) é logicamente inviável suster a centralidade da jurisdição. Como afirmado em outra ocasião, soa difícil admitir que a orquestra do processo seja regida pela jurisdição.[11] Ao perspectivar a jurisdição no centro de uma disciplina propedêutica do processo, os instrumentalistas se tornaram alvo de diferentes críticas; todavia, mesmo em seu escancarado compromisso com o poder (ideologia em sentido estrito),[12] não podem ser taxados de incoerentes. Decerto que isso não inibe a criação ou reconhecimento de uma «Teoria da Jurisdição», adotando-se conteúdo programático compatível ao objeto de estudo. Mas é preciso dar nome correto às coisas; nominar deixa de ser tão aleatório quanto parece.
Já foi dito que o garantismo é processual, ao passo que o ativismo é judicial.[13] Do discurso garantista não é possível extrair premissas à sustentação do ativismo (em geral ou «ad hoc»). Por coerência, o respeito às garantias impele a repúdia ao protagonismo (seja no âmbito do procedimento judicial, seja no espectro de uma teoria da decisão), mormente se lembrarmos que a «legalidade» é uma garantia fundamental (que não no viés que lhe fora atribuído pelo positivismo legalista). Inexiste ativismo ou protagonismo judicial do bem. Todavia, ao pressupor três ordens normativas paralelas e apostar em capacidades sobre-humanas do julgador, o discurso eficientista ou da instrumentalidade (fase) reclama o ativismo; reclama ou fomenta.
Se o processo não pode ser apequenado (instrumento, ferramenta etc.), torna-se infrutífera qualquer tentativa de mascará-lo com adjetivações. Em outras palavras, é insuficiente concebê-lo como «instrumento político» (tal como feito por adeptos da fase da instrumentalidade), para não ser «instrumento técnico» (símbolo do processualismo científico), ou mesmo «instrumento ético» (emblema da cooperação/formalismo-valorativo); tudo na vã tentativa de romper com a fase/modelo imediatamente antecedente. Mas a «pretensa variação do adjetivo não mascara a permanência do substantivo (instrumento). Se se afirma instrumento, então é político (poder); um suposto estágio ético não mascara isso.»[14] A emenda é incapaz de corrigir o problema do soneto. É o que se afirma tendo a ordem jurídica brasileira como referente, porque não se almeja construir noção de processo que atravesse o globo terrestre (pretensão universalista, a-histórica).[15]
Sob outro prisma, processo tampouco é método de resolução dialogada de litígios.[16] Quiçá seja possível visualizar que o processo se interponha entre sujeitos de direito (pessoas naturais, jurídicas, entes despersonalizados etc.) como o espaço dialógico preferencial à resolução de crises de aplicação do direito material. Ocorre que é possível substituir o termo processo por procedimento (judicial) na assertiva anterior, sem prejuízo da leitura ou corruptela do sentido. Sob tal amesquinhamento, a processualidade continuaria asfixiada pela procedimentalidade,[17] sem que houvesse «ganho» teórico ou avanço democrático extraído da compreensão de processo.
A processualidade é o horizonte das garantias processuais contrajurisdicionais; nela se situam o processo (em sua substancialidade específica), contraditório, ampla defesa, fundamentação, juiz natural etc. Dela são extraídos os principais contornos do «modelo processual» (disciplina de poderes, direitos, deveres e/ou ônus processuais dos sujeitos do procedimento judicial). Das garantias processuais se extraem situações jurídicas de vantagem (ativas) em desfavor do Estado-jurisdição (passivas); sendo de sua essência a circunscrição do poder a trilhos democráticos/republicanos, delas (garantías) decorrem direitos às partes correlatos a deveres do órgão jurisdicional. Falar em garantias processuais ou dissertar a processualidade é reverberar sopros de liberdade às partes em combate à asfixia do arbítrio/discricionariedade. As normas processuais se embarreiram à preservação/promoção da autonomia dos sujeitos parciais.
Se as garantias se erigem contra o Estado-jurisdição – e fica o convite a qualquer um para refazer o percurso histórico de surgimento e atual modelagem de cada uma delas –, resta difícil admitir que delas (garantias) sejam retirados deveres às partes correspectivos a faculdades/poderes do juízo. A título de ilustração, à vista de seu amparo no art. 93, IX, CF/1988 (garantia de fundamentação), fica desautorizada a aplicação do art. 489, § 1º, CPC em desfavor dos sujeitos parciais, tal como já foi aventado por alguns.
Por óbvio, as afirmações anteriores não autorizam a ilação de ausência de deveres aos sujeitos parciais de um procedimento judicial. É evidente que eles existem! Sucede que outras são as razões subjacentes, que não a de garantias ou de direitos fundamentais. Devemos velar para que as garantias permaneçam infensas a qualquer tentativa de subversão.
No rigor da técnica, para quem vislumbra caráter deontológico na cooperação, disso resulta que ela não poderia ser enxergada como norma processual (carece de índole garantística). Logo, inusitada ou equivocada a opção em situá-la entre as «normas» fundamentais do processo civil (sic.) – sem perder de vista a hipostasia presente no art. 6º do CPC, o único dos preceitos do Livro I/CPC associado à justiça (em sentido filosófico?). No mesmo passo, é uma contradição de termos falar em «modelo processual colaborativo», visto que «processual» é o que protege/embarreira, ao passo que do elemento «colaborativo» se pretende instituir deveres das partes com o órgão jurisdicional, sem olvidar o encobrimento do protagonismo judicial (espécie de ativismo do bem…).[18] Dando os nomes devidos, a cooperação não passa de uma «tecnologia da jurisdição».
[1] Texto-base de minha palestra no I Congresso Brasileiro de Direito Processual Garantista (18 a 20 de setembro, 2019), sediado em Curitiba/PR, sob a organização de Antonio Carvalho, Eduardo Costa e Luciana Benassi.
[2] Doutor em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professor de Processo Civil da Unicap. Professor de Processo Civil e de Processo Penal da Faculdade Imaculada Conceição do Recife (Ficr). Membro fundador e Diretor de Assuntos Institucionais da ABDPro. Advogado.
[3] Tivemos a oportunidade de detalhar esses obstáculos no seguinte trabalho: ABBOUD, Georges; PEREIRA, Mateus Costa. O instrumentalismo processual à luz de críticas dogmáticas, filosóficas e epistemológicas: do não respondido ao irrespondível. In: Adriana Regina et. al. (Org.). Processo e Liberdade: estudos em homenagem a Eduardo José da Fonseca Costa. Maringá: Thoth, 2019, v. 1, p. 343-368.
[4] Tratamos disso em: PEREIRA, Mateus Costa. Eles, os instrumentalistas, vistos por um garantista (tese de doutorado). Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2018, 273 p.
[5] ABBOUD, Georges; PEREIRA, Mateus Costa, op. cit.
[6] Em sentido próximo: LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 2. ed. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 83-84.
[7] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 182.
[8] ABBOUD, Georges; PEREIRA, Mateus Costa, op. cit.
[9] Sobre o tema, ver: LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 167.
[10] Sobre o tema, impende a consulta dos trabalhos de Eduardo Costa: Breves meditações sobre o devido processo legal. Empório do Direito, Florianópolis, Coluna ABDPro, 10 jan. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/2s9w0GQ>. Acesso em: 10 jan. 2018; e Processo como instituição de garantia. Revista Consultor Jurídico, 16 nov. 2016. Disponível em: <https://bit.ly/2LA5K0n>. Acesso em: 20 nov. 2016.
[11] O ponto foi aprofundado no seguinte trabalho: PEREIRA, Mateus Costa. Da Teoria «Geral» à Teoria «Unitária» do Processo (bases): um diálogo com Eduardo Costa, Igor Raatz e Natascha Anchieta; uma resposta a Fredie Didier Jr.. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, Fórum, v. 105, p. 219-238, 2019. (trabalho disponível no academia.edu).
[12] Sobre o tema da ideologia aplicada ao direito processual, assim como sua diferenciação em ideologia em sentido amplo e estrito: PEREIRA, Mateus Costa. Processo e Ideologia (em sentido amplo e estrito): um novo horizonte à compreensão do fenômeno processual. Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro), Belo Horizonte, Fórum, v. 103, p. 283-296, 2018. (trabalho disponível no academia.edu)
[13] Conferir os trabalhos já citados de Eduardo Costa.
[14] PEREIRA, Mateus Costa. Eles, os instrumentalistas, vistos por um garantista (tese de doutorado). Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2018, 273 p.
[15] Esse problema foi denunciado na seguinte obra: A teoria geral do processo e seu tripé fundamental: racionalismo, pensamento sistemático e conceitualismo. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.
[16] É a posição de Adolfo Alvarado Velloso (Teoría general del proceso: el proceso judicial. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Astrea, 2015, p. 37; p. 41; 55 e ss.)
[17] Tratamos desse problema no texto que inaugurou a presente série no Empório do Direito, disponível no link: <https://bit.ly/2ViEVTB>.
[18] Por todos: CREVELIN, Diego. O caráter mítico da cooperação processual. Empório do Direito, Florianópolis. Coluna ABDPro, 06 dez. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/2sbqVhe>. Acesso em: 11 fev. 2018.