Diego Crevelin de Sousa[1]
- Considerações iniciais
Desde a década de 1980 é forte entre nós o discurso de se buscar uma adequada divisão de trabalho entre partes e juiz (referência marcante em Barbosa Moreira).
A ideia impactou na compreensão dos brocardos iura novit curia e da mihi factum, dabo tibi ius. Em suas leituras tradicionais – e quase caricaturais, frise-se –, era função do juiz aplicar o direito ao caso, sem maior interação com as contribuições das partes, e era função das partes aportar provas aos autos, relegando-se ao juiz uma postura passiva.
A via encontrada para reler tais brocardos foi aquilo que chamo de dimensão argumentativo-discursiva do contraditório. Atentando para o caráter problemático do direito, à luz dos avanços provenientes da filosofia, mormente pós-giro linguístico, a doutrina passa a divisar o contraditório como garantia de informação, reação, influência e não surpresa. As contribuições das partes sobre o sentido do direito passam a ter de ser seriamente consideradas pelo juiz, estabelecendo-se um entretecimento inexorável entre contraditório e fundamentação das decisões (André Cordeiro Leal).
Isso iluminará tanto a decisão sobre o direito quanto a decisão sobre os fatos. O isolamento funcional encerrado pela leitura tradicional é questionado. Reconstruir o direito e os fatos passa a ser função conjunta das partes e do juiz. O fato de o juiz conhecer o direito não o desonera de considerar seriamente a argumentação jurídica das partes. O fato de as partes terem ônus probatórios e normalmente aportarem meios de provas aos autos não desobriga o juiz de assumir uma postura ativa, saindo à cata dos meios de prova necessários ao julgamento conforme à verdade e à realização da justiça, ainda que em caráter subsidiário. Grosso modo, nisso consiste a tão propalada comunidade de trabalho: assuntos jurídicos e fáticos são definidos no procedimento em contraditório entre todos os sujeitos do processo.
Todas as epistemologias processuais concordam com a dimensão argumentativo-discursiva da garantia do contraditório. O “senão” é apresentado pelo garantismo processual. Ele a tempera com a dimensão funcional da garantia do contraditório. Grosso modo, as garantias processuais são situações jurídicas ativas (pretensões, faculdades, poderes, imunidades etc.) das partes que visam a limitar, controlar e racionalizar o Estado-juiz. Em sua dimensão relacional, portanto, as garantias processuais concedem direitos às partes e deveres ao Estado-juiz. É a dimensão funcional das garantias processuais: todas as situações jurídicas ativas decorrentes de garantias processuais são funções privativas das partes, só podem ser exercidas por elas; todas as situações jurídicas passivas decorrentes de garantias processuais são funções privativas do juiz, só podem ser exercidas por ele.
Daí se tiram critérios jurídicos para a condensação da garantia da impartialidade, segundo a qual o juiz não pode ser parte nem exercer função de parte. Não exercer função de parte é não exercer situação jurídica ativa derivada de garantia processual. Por isso se entende, p. ex., que os poderes instrutórios oficiosos são inconstitucionais: como o contraditório é o fundamento constitucional do direito à prova, as situações jurídicas probatórias ativas (requerer, produzir, participar da produção, se manifestar sobre a prova produzida e ter essa manifestação considerada) são funções privativas das partes, de modo que o juiz que aporta meio de prova aos autos exerce função de parte, é partial.
Não se nega a importância da dimensão argumentativo-discursiva da garantia do contraditório – o juiz deve oferecer respostas aos argumentos das partes e não pode surpreendê-las –; apenas se adverte para o fato de que ela não pode borrar os limites funcionais que balizam os espaços de atuação das partes e do juiz, sob pena de instrumentalizar garantias para ampliar o poder que elas existem para limitar[2].
- Depoimento pessoal e confissão ficta: quando se deve fazer a comunicação prévia?
Quero chamar a atenção para um aspecto específico da divisão de trabalho entre partes e juiz: quando a parte deve ser advertida da possibilidade de aplicação da cominação de confissão ficta no bojo do depoimento pessoal?
Sabe-se que na intimação para depor deve contar expressamente a advertência de que, se o depoente não comparecer, ou comparecendo, se recusar a responder, incidirá a cominação de presunção ficta, presumindo-se verdadeiros os fatos que com o depoimento se buscava provar (CPC, art. 385, § 1º). Há recusa a responder quando o depoente silencia (CPC, art. 385, § 1º) ou quando responde com evasivas (CPC, art. 386).
Ou seja, a cominação incide quando a parte, (i) intimada para depor, (ii) presente na intimação a advertência de cominação, (iii) não comparece ou (iv) se recusa a responder, (iv.1) silenciando ou (iv.2) lançando evasivas.
Segundo a doutrina, a parte tem o dever de comparecer e o ônus de depor. O dever de comparecimento surge com a intimação para a audiência[3]. O ônus de depor surge com a inserção, na intimação para prestar depoimento, da advertência do art. 385, § 1º, CPC. Feita a intimação sem tal advertência, “o dever de comparecer subsiste, mas não o ônus de depor”[4]. Nesse caso, o não comparecimento da parte constitui ato atentatório à dignidade da justiça, apenável com multa (art. 77, IV e § 2º, CPC)[5], mas, comparecendo a parte e se recusando a depor (silenciando ou lançando evasivas), não cabe a aplicação da cominação[6]. Seja como for, comparecendo a parte e advertindo-a o juiz, na forma do art. 385, § 1º, CPC, estará sanado o defeito da intimação e ativado o ônus de depor[7]. Se o depoente, regularmente intimado, não comparecer justificadamente, também não se aplica a cominação. Nesse caso, a audiência deve ser redesignada (art. 362, II, CPC)[8] e reiterada a intimação, igualmente com a advertência do art. 385, § 1º, CPC.
Pois bem.
Pensando na necessidade de evitar a aplicação da sanção mediante surpresa da parte, a questão que me interessa aqui é a seguinte: o juiz deve reiterar a advertência no início ou durante o depoimento?
Há quem sustente que sim[9]. Sou simpático a esse entendimento, de resto bastante alinhado às ideias de lealdade e prevenção do juiz com as partes, mas não vejo como dizer, genericamente, que ele é um direito da parte (e um dever do juiz), cuja inobservância impede a posterior aplicação da sanção de confissão ficta. A parte já foi intimada pessoalmente, inclusive com a cominação. Não poderá se dizer surpresa com a eventual aplicação da sanção de confissão ficta caso não compareça ou, comparecendo, se recuse a depor.
A não ser em uma hipótese: quando o juiz entende que o depoente se recusa a depor porque lança «respostas evasivas»[10]. Nesse caso, o juiz não pode aplicar a confissão ficta por entender que as respostas foram evasivas se não advertiu a parte, durante o depoimento, dessa impressão. Aí sim, a aplicação da sanção gera surpresa, impondo a invalidação da decisão (CPC, art 10).
A concessão é imperiosa porque «resposta evasiva» é um conceito eminentemente interpretativo, só concretizável no caso concreto. É perfeitamente possível que a mesma resposta seja considerada satisfatória por alguém, mas evasiva por outrem. Dois juízes podem valorar diversamente a mesma resposta. E pior: a parte pode crer que sua fala é categórica, enquanto o magistrado a reputa evasiva.
Dadas essas possibilidades – bastante críveis –, é intolerável que a aplicação da confissão ficta resulte de ruídos de comunicação, e a forma de evitar isso – a prolação de decisão surpresa – é a reiteração da advertência não só no início, mas, principalmente, durante o depoimento. A transparência e previsibilidade que norteiam os atos processuais impõem ao juiz que dialogue previamente com o depoente a fim de evitar surpresas por falhas dialogais. Se o magistrado considera as respostas do depoente evasivas, deve adverti-la dessa impressão, sinalizando que, a seguir por essa trilha, poderá ser sancionado. Aí sim, mantida a postura fugidia, será válida (e legítima) a aplicação da confissão ficta.
Trata-se do dever de prevenção, por força do qual o juiz permite à parte que ela reaja, esclarecendo eventual mal entendido ou empreendendo postura mais adequada, influenciando inequivocamente na formação do provimento e evitando a surpresa de ter a cominação aplicada sem qualquer indicativo prévio e inequívoco de que o juiz reputava as respostas evasivas. Sem isso, a decisão que aplicar a sanção deverá ser invalidada.
O art. 386, CPC, não conduz a essa conclusão. Segundo o dispositivo, «quando a parte, sem motivo justificado, deixar de responder ao que lhe for perguntado ou empregar evasivas, o juiz, apreciando as demais circunstâncias e os elementos de prova, declarará, na sentença, se houve recusa de depor». Aplicado tábula rasa, porém, o dispositivo é inconstitucional.
Como é apenas na situação concreta e pela consideração das pessoas envolvidas que se pode definir a ideia de «respostas evasivas», o juiz deve prevenir a parte de que suas respostas soam evasivas e que poderá aplicar a confissão ficta. Se não sinalizar nesse sentido no curso do depoimento e aplicar a sanção, a decisão deverá ser invalidada. Apenas assim se salva a mácula de inconstitucionalidade da segunda parte do art. 386, CPC.
- Considerações finais
A divisão de trabalho entre juiz e partes é, sem dúvida, um tema da maior importância. É necessário saber o quais são as funções das partes e do juiz. O publicismo processual brasileiro – com seus vários personagens: instrumentalismo processual, neoprocessualismo, formalismo-valorativo, processo civil do Estado Constitucional etc. – se constitui sob essa preocupação e forneceu, sem dúvida, contribuições da maior importância ao que chamo de dimensão argumentativo-discursiva da garantia do contraditório.
O curioso é que, justamente por sua fidelidade ao fortalecimento do papel do juiz – que nunca pode ser diminuído, por isso o que se propugna é a elevação do poder das partes para equilibrar a comunidade de trabalho, o que acaba sendo uma vitória de Pirro, dado que, ao fim e ao cabo, o juiz compartilha das competências funcionais das partes, mas monopoliza a competência decisória, sendo o único sujeito processual que exerce poder, que submete os demais –, o publicismo processual acaba não só por eclipsar a dimensão funcional da garantia do contraditório – que poderia, efetivamente, construir um ambiente processual no qual cada sujeito processual exerce apenas as funções que lhe tocam, as partes protagonizando o debate e o juiz protagonizando a decisão, ainda que devendo interagir inflexivelmente com a colaboração daquelas – como por não explorar satisfatoriamente todas as possibilidades da própria dimensão argumentativo-discursiva da garantia do contraditório. Se meus argumentos estiverem corretos, a interpretação corrente conferida ao art. 386, CPC, que não atenta para o dever de prevenção por mim ora sublinhado, é um exemplo privilegiado dessa cegueira.
A dimensão argumentativo-discursiva da garantia do contraditório permite, então, concluir seguramente que não, não é possível punir sem prevenir. O juiz, considerando que o depoente oferece respostas evasivas, tem o dever de prevenir a parte, advertindo-a sobre a sua impressão, sob pena de a posterior aplicação da sanção de confissão ficta dever ser invalidada por ofensa à garantia do contraditório como influência e não surpresa.
[1] Mestre em direito processual pela UFES. Conselheiro da ABDPro. Parecerista ad hoc da RBDPro. Professor do curso de direito das FAACZ. Advogado.
[2] Trato disso com mais vagar em: SOUSA, Diego Crevelin de. Impartialidade. A divisão funcional de trabalho entre partes e juiz a partir do contraditório. Belo Horizonte: Letramento / Casa do Direito, 2021, passim.
[3] A existência desse dever é questionável em face da garantia de que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo, que tem eficácia transprocedimental; o tema, porém, não será aqui problematizado.
[4] ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. T. III. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 521.
[5] ASSIS, Araken de. Processo…, p. 519.
[6] DIDIER JR, Fredie. OLIVEIRA, Rafael Alexandria. BRAGA, Paula Sarno. Curso de Direito Processual Civil. V.2. 10ª Ed. Jus Podivm, 2015, p. 150.
[7] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e Convicção. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 456.
[8] AMENDOEIRA JR, Sidnei. Depoimento Pessoal e Confissão no Novo CPC. Coleção Grandes Temas do Novo CPC. V.5. Coord. Geral Fredie Didier Jr. Editora Jus Podivm, 2015, p. 696-697.
[9] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Curso de Direito Processual Civil. V.II. 2012, p. 245.
[10] Na hipótese de recusa a depor não se exige nova advertência, porque qualquer pessoa sabe que não responder significa calar diante das perguntas. Assim, a parte que silencia aos questionamentos a si feitos não pode se dizer surpresa com a cominação de confesso adiante aplicada, caso o juiz não tenha reiterado a advertência antes de iniciar o depoimento. Bem por isso, eventual alegação de surpresa constitui comportamento contraditório lesivo à boa-fé objetiva (art. 5º, CPC/2015) e litigância de má-fé (art. 77, II, CPC). Claro, o juiz pode reiterar a advertência ao depoente silente, mas aqui não há dever.