NEGOCIAÇÃO COLETIVA, GREVE E DIREITO À INFORMAÇÃO – Parte 1

UMA PEQUENA ODE AO QUE AINDA NÃO SE TEM

NEGOCIAÇÃO COLETIVA, GREVE E DIREITO À INFORMAÇÃO: UMA PEQUENA ODE AO QUE AINDA NÃO SE TEM

Pandemia, Negociação Coletiva e Greve

Envoltos, todos, na lide diária de deglutição de um sem número de normas que, marcadamente para as relações de trabalho, tentam administrar o caos gerado, a partir de 2020, com a crise sanitária e econômica, tudo sob o mote da urgência, por vezes se deixa, sob a perspectiva política e institucional, quer de governos, quer de entidades patronais e sindicais de qualquer matiz, de aproveitar a oportunidade para se avançar no regramento de instrumentos coletivos de pacificação social e trabalhista.

A pandemia tornou inadiável, por mais atabalhoado que tenha se mostrado todo o processo, o enfrentamento do problema relacionado à investigação quanto a formas de instrumentalização “para e pelo” diálogo por parte dos vários atores sociais, dos sujeitos coletivos de trabalho, em prol do êxito da negociação coletiva, do fortalecimento de democracias laborais no terreno intraempresarial e para a contenção dos traumas causados por movimentos paredistas.

Da miríade normativa promovida desde a eclosão da pandemia[1], surge evidente que os instrumentos próprios da negociação coletiva, como são os casos das convenções e dos acordos coletivos de trabalho, não foram reverenciados, mas, isso sim, (i) igualados, em importância, a meros acordos individuais de trabalho; (ii) indicados como mera alternativa a depender da vontade unilateral, prática, da empresa; (iii) indicados como instrumentos subsidiários e/ou supletivos para quando de eventual anomia de acordos individuais; ou (iv) simplesmente colocados à margem de dada normatização, em prol de uma preponderância emergencial de instrumentos individuais ou vontades unilaterais.

Nesse panorama, é possível entender que a negociação coletiva passou por um período de forte agonia, capaz de caracterizar o Direito Coletivo do Trabalho, de 2020 até hoje, como um direito “agônico”[2], estudado e interpretado com olhos voltados apenas à urgência nas respostas à crise, sem preocupação quanto ao que poderá advir após o fim da pandemia ou após uma melhor estabilização de seus efeitos.

Amplia a angústia dos observadores da negociação coletiva, e das consequências geradas por seu malogro (como causa eventual para greves, por exemplo), a constatação de como a urgência pensou soluções pensadas apenas de cima para baixo, em uma ilustração de domesticação legislativa da via coletiva, colocando-a lado a lado ou em posição subalterna, subsidiária e/ou supletiva em relação a acordos individuais, inibindo as soluções do universo coletivo intraempresarial ou as reduzindo quando confrontadas aos esforços, “mais urgentes”, “mais necessários” dos novos tempos, da relação individual de trabalho.

Enquanto, por estas bandas, indica-se, com amparo na legislação fartamente produzida na pandemia, onde, como e para quem, em termos materiais, a negociação coletiva se verificará e onde, e como, e para quem, a negociação coletiva deixará de ser observada ou poderá ser substituída por uma negociação individual, a legislação europeia tem pontuado que, cada vez mais, os países tem contado com os frutos da negociação coletiva para, principalmente, envolver empregados nas medidas adotadas pelas empresas para ultrapassar o atual momento de crise global.

Enquanto o mérito e a forma negociais são entregues à negociação coletiva, a legislação estatal se dedicou, com mais empenho, às clássicas soluções pensadas no âmbito do Direito Individual do Trabalho, tais como a estruturação de esquemas de licença remunerada com a contrapartida de subsídios governamentais para a cobertura das folhas de pagamento[3]; a regulação legal de incentivos ao teletrabalho e de gozo de licenças remuneradas, com destaque, ainda, à utilização de contratos por tempo determinado ou por tempo parcial; a adoção de hipóteses de suspensão contratual e redução do tempo de trabalho e de salário, com contrapartida substancial governamental[4] na Espanha, na Polônia, na Bélgica, na Suécia.

Onde foi necessária a intervenção legal, construíram-se soluções desburocratizantes para o melhor desempenho sindical, como a aceitação da realização remota de reuniões de negociação (Alemanha e França); a aceitação de assinaturas eletrônicas ou de assinaturas escaneadas para os necessários documentos escritos (Espanha, França e Holanda); e, inclusive, de superação da forma escrita para os documentos atinentes à negociação coletiva, desde que gravadas ou atestadas por videoconferências (Itália).

Quando relacionados à pandemia, alguns prazos aplicáveis ​​à conclusão de um acordo coletivo foram efetivamente reduzidos, temporariamente. Em empresas com menos de vinte empregados e sem comitê de empresa, o período mínimo entre a apresentação do projeto de contrato pelo empregador aos empregados e a realização do referendo coletivo foi reduzido de 15 (quinze) para 5 (cinco) dias. Na Alemanha, a regra da necessária existência de forma escrita para acordos de natureza coletiva não foi alterada pelo legislador devido à pandemia, mas, em acordos coletivos de empresa, se exige uma resolução formal do conselho de empresa para a efetividade. De acordo com a nova lei aprovada pelo parlamento alemão em reação à pandemia, as resoluções do conselho de empresa agora podem ser adotadas por videoconferência e telefone. Na Itália, e no triste período inicial de lockdown mais severo, muitos acordos sindicais foram alcançados por meio de reuniões de videoconferência, tendo a legislação regulado expressamente o assunto[5].

Mesmo que haja a necessidade de desburocratização da legislação para o enfrentamento dos efeitos da pandemia nas relações de trabalho, com previsões setorial e economicamente adequadas, o que se evidencia, aqui, é que uma espécie de soft law[6] do Direito Sindical tem sido introjetado no ordenamento pela legislação emergencial.

Se é certo que se vê o Direito do Trabalho sendo utilizado e explorado para amortecer os impactos de crises infinitas com as quais se convive no capitalismo, e embora se pudesse partir para a conclusão de que teria havido, com a pandemia, um malogro do processo negocial, a experiência prática demonstrou, curiosamente, o contrário. Sindicatos considerados como entidades extintas em dadas categorias profissionais e econômicas, ressurgiram, explorando a inovação da chamada “Reforma Trabalhista”, com a prevalência do negociado sobre o legislado, para estimular novas negociações coletivas e, assim, recuperar certa representatividade sindical perdida desde que houve a extinção do financiamento sindical oficial obrigatório.

O quadro de insegurança jurídica alimentado pela legislação trabalhista individualista de emergência que eclodiu em 2020, aliado ao caos econômico que impactou os números do desemprego, de alguma forma criaram, a despeito de tudo, ambiente propício a um incremento da atividade negocial por parte de sindicatos.

Estudos divulgados, constantemente, pelo DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) em seu sítio na internet, dão conta de que, de março a junho de 2021, dos mais de 7.300 (sete mil e trezentos) instrumentos da negociação coletiva (convenções ou acordos coletivos de trabalho) levados a registro pelo “Sistema Mediador”, mais da metade (cerca de 55%) tratavam de assuntos relacionados à pandemia, ao combate à Covid-19.

Nessa pletora de instrumentos coletivos, assuntos relacionados a reajustes salariais deixaram de ser o tema principal ao cederem espaço para novos assuntos e novas atuações sindicais, desde a função básica de melhoramento das condições até as de flexibilização e de alternativa à aplicação descontextualizada da lei, que aqui se chama de “individualista”, como a de instrumento de gestão da empresa com a assunção de novos objetos e tipos de cláusulas.

E a segurança jurídica, que, formalmente, pela lei, não se conseguia desenvolver, ressurgiu na prática das negociações coletivas, e para o trato de questões de fundamental importância em tempos pandêmicos, como a da regulação do teletrabalho (implantação de sistema de comodato de equipamentos; indenizações por custos operacionais ou de ajudas de custo; práticas ergonômicas e de controle da jornada; autorização do teletrabalho para estagiários e aprendizes); da gestão de trabalhadores integrantes de grupos de risco (idosos, gestantes, com comorbidades, com doenças crônicas); de formas de suspensão do contrato de trabalho e de redução salarial mesmo para além dos limites temporários de dadas leis emergenciais; de banco de horas; de instituição de protocolos de contingenciamento da disseminação do coronavírus.

E tudo isso se deu em um contexto de constante adaptação para as entidades sindicais. As assembleias gerais tiveram que sofrer releituras, até por conta da realidade já vivenciada no Poder Judiciário, de ampla prática de audiências e sessões de julgamento virtuais/telepresenciais”, para admitir a ocorrência de assembleias sindicais por meios eletrônicos, independentemente da previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica, que assegurassem a identificação dos participantes e a segurança do voto e demais deliberações (art. 5º, caput e parágrafo único, da Lei n. 14.010/2020).

O isolamento causado pela pandemia acabou catapultando a prática negocial para o ambiente, em particular, digital. A manipulação de situações e de votações, que por vezes ocorria na realidade presencial, física, foi, inclusive, diminuída com o proporcional aumento da participação na negociação virtual, mormente considerando bases territoriais muito extensas.

O mais importante a destacar, de toda a sorte, é que, em um ambiente jurídico altamente inseguro e submetido às adversidades políticas, a negociação coletiva se erigiu, de um certo desprestígio, como instrumento apto para conferir segurança jurídica quando o mundo jurídico está combalido, servindo, a negociação, aos propósitos de ferramenta de gestão da empresa, não só para tratar de condições de trabalho, mas para tratar da organização empresarial, mormente em tempos de crise.

Nesse panorama, duas pesquisas, relativamente recentes, do DIEESE[7], revelaram dados importantes sobre a greve que também merecem consideração.

Segundo o que o DIEESE compilou das greves ditas oficiais para o setor privado, descartado o verdadeiro universo, constante, de “greves por fora”[8], realizadas por trabalhadores ou por coletivos associativos outros à margem dos sindicatos, das 417 greves compiladas e estudadas no ano de 2020, mais da metade dos movimentos se iniciaram e se findaram no mesmo dia, sendo exceções aqueles que ultrapassaram 10 dias. Quase a totalidade das greves (89%) se concretizaram no âmbito individual empresarial. Pouquíssimas se efetivaram no âmbito de toda a categoria profissional. Mais de 90% das greves foram solucionadas pela negociação direta entre as partes para assuntos que se apresentaram desde o atraso de parcelas salariais (salário, férias e 13° salário), reajuste salarial, alimentação e assistência médica, além de um perfil mais defensivo caracterizado pela pauta de manutenção dos postos de trabalho e combate a processos demissionais.

Para o ano de 2021, essas características das greves se mantiveram no setor privado, com uma nota importante destacada pelo DIEESE, consistente no aumento do número de greves de janeiro a junho, mas com diminuição no número de horas paradas; e consistente, também, na evolução e aumento do número de greves ditas “sanitárias”, com demandas por segurança e combate à contaminação, seguida, de perto, pelo recrudescimento da pauta combativa por reajuste salarial e pelo proporcional declínio de pautas mais defensivas de manutenção do emprego.

Dos estudos do DIEESE, e para os fins destas reflexões, emergiu a simbologia de as greves terem se dado, de 2020 a 2021, primordialmente: (i) no seio da empresa e sem natureza categorial (encampando um quantitativo de até 200 empregados); (ii) por períodos curtos de tempo representados na deflagração do movimento coletivo e em sua extinção em um só dia; tendo sido resolvidas (iii) por negociação direta entre as partes, fora das rédeas da Justiça do Trabalho, inclusive para o trato de greves sanitárias.

Surpreende como um direito positivo agônico, quando versa as relações coletivas de trabalho, pode ser deixado de lado para que os sujeitos coletivos de trabalho, assumindo as suas responsabilidades e esperanças, criem cenários de solução de baixo para cima, a despeito de tudo. E o Brasil sequer possui, nesse cenário, um mínimo direito regrado de acesso à informação em moldes civilizatórios.

[1]          Até, ao menos, nesta data, o advento da natimorta Portaria MTP n° 620/2021 (DOU de 1°/11/2021).

[2]          BATISTA, Homero. Legislação Trabalhista em Tempos de Pandemia: Comentários às Medidas Provisórias 927 e 936. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 21.

[3]          MEICHTRY, Stacy; HANNON, Paul; FAIRLESS, Tom. Empresas querem manter Subsídio a Salário na Europa. Valor Econômico, São Paulo, 27 mai 2020. Internacional, p. A9.

[4]          HALL, Ben; STRAUSS, Delphine; DOMBEY, Daniel. Proteção ao Emprego é Dilema na Europa. Valor Econômico, São Paulo, 20, 21 e 22 jun. 2020. Internacional, p. A9.

[5]          LEADERS LEAD GROUP. Coronavirus: Covid-19 and Collective Bargaining Agreements. Disponível em: <https://www.leadersleague.com/en/news/coronavirus-covid-19-and-collective-bargaining-agreements>. Acesso em 5 jun. 2020.

[6]          SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto de; GASPAR, Danilo Gonçalves; COELHO, Fabiano; MIZIARA, Raphael. Direito do Trabalho de Emergência: Impactos da COVID-19 no Direito do Trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 29.

[7]          Balanço das Greves de 2020. São Paulo: DIEESE, 2021, pp. 2, 5, 21 (da série “Estudos e Pesquisas”, n° 99); e Balanço das Greves do Primeiro Semestre de 2021. São Paulo: DIEESE, 2021, pp. 11, 12, 13 e 16 (da série “Estudos e Pesquisas”, n° 100).

[8]          Segundo a expressão é adotada por CORREGLIANO, Danilo Uler. O Direito e as Greves por Fora. Belo Horizonte: RTM, 2020.

Autor

  • Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais (Direito do Trabalho) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). Membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior (IBDSCJ) e da Academia Brasiliense de Direito do Trabalho (ABRADT). Advogado em Brasília/DF.

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