MONOPÓLIO JURISDICIONAL PELO ESTADO

ainda é defensável?

MONOPÓLIO JURISDICIONAL PELO ESTADO: ainda é defensável?

A estatalidade é, talvez, o principal aspecto que conforma os conceitos de jurisdição cunhados a partir da doutrina clássica italiana. Trata-se de vislumbrar a atividade jurisdicional pelo prisma de uma incumbência monopolizada unicamente pelo Estado, marcadamente enraizada na busca pela ruptura de um vigente paradigma liberal a partir do final do século XIX, quando o interesse maior em romper com tal perspectiva tinha o condão de privilegiar as questões sociais e fortalecer o Estado como um todo[1]. Tal monopólio do Estado para a jurisdição se intensifica diante da busca pela ruptura do observado domínio das partes sobre a condução dos processos, em que o comportamento dos juízes era caracterizado pela passividade e sujeição quase integral aos interesses dos litigantes.

Tal passividade judicial mereceu duras críticas de importantes juristas desde a segunda metade do século XIX, dentre os quais se insere Anton Menger, que não escondia sua preocupação com a omissão dos juízes frente às claras discrepâncias vislumbradas entre litigantes das classes ricas, quando em confronto com litigantes das classes pobres. Segundo Menger, o procedimento jurisdicional era elemento complicador que superava a própria demonstração do direito pleiteado, culminando, em não raros casos, na perda de direitos pela incapacidade na demonstração devida durante o procedimento.[2]

A partir da discrepância visível denunciada, intensificou-se a necessidade da promoção e resguardo pelo Estado do equilíbrio na relação processual, objetivando extirpar ou ao menos reduzir as discrepâncias havidas entre os litigantes que maculavam diretamente a apreciação devida dos direitos postos.

Em suas proposições, a partir da experiência do Código Processual do rei Frederico da Prússia de 1781 (Frederico, o Grande), Menger sugeriu modificações legislativas e procedimentais que viabilizassem a assunção, pelos juízes e tribunais, de certo nível de representação das partes pobres perante aquelas mais abastadas financeiramente, auxiliando na própria condução dos economicamente débeis em processos judiciais, objetivando romper definitivamente com o monopólio individual dos litigantes sobre a marcha processual[3].

Àquela época, o entendimento do juiz passou a ser considerado como superior ao das partes, cabendo à marcha processual acompanhar o raciocínio do magistrado acerca dos direitos postos à análise. Nessa quadra, inclusive, o processo passou a ser visto como instrumento de atuação da jurisdição, legitimando a condução do juiz de acordo com as suas pré-compreensões. A partir da concepção reforçada por Oskar Büllow, o domínio das partes e dos advogados passou a ser integralmente quebrado por um discurso que privilegiava a sapiência do magistrado e o seu protagonismo na relação processual, visando, a reboque disso, a consolidação das bases do Estado Social com o reforço de sua ingerência na vida dos cidadãos e do Judiciário.[4]

É bastante claro o contexto de assunção pelo Estado da atribuição monopolística da solução dos conflitos de interesse em sociedade, “que ao longo dos séculos trafegou entre as mãos de sacerdotes, reis, assembleias comunais, árbitros” e demais entes caracterizados pelo domínio de grande gama de poder[5]. O Estado absorve o encargo como forma de centralização racional da possibilidade de resolução dos conflitos, mas ainda calcada na figura de um poder matriz, o que se reflete de modo muito claro em ideias defendidas na presente quadra histórica.

Não é incomum perceber, por exemplo, a indicação de que a jurisdição é ato de poder[6], ou ato imperativo[7] de resolução de conflitos entre particulares. Assim, se apura a existência de posições firmes sobre a jurisdição existir apenas a partir da estrutura estatal consolidada.[8]

Tal poder do Estado, enquanto organismo responsável por todo o amparo da sociedade em suas relações interpessoais, se justificaria a partir de sua própria organização plena para o exercício de funções em prol da sociedade, como entidade alheia a qualquer individualidade e comprometido com o resguardo do bem estar comum da coletividade, fazendo-o em nome do povo e em favor deste povo[9], a partir de sua própria soberania e objetivando reforçar ainda sua potencialidade.

No entanto, este monopólio do Estado, que àquela época se justificou como busca pela quebra do controle excessivo das partes e suas individualidades nos litígios, não se justifica no discurso jurídico na alta modernidade.

Importante o resgate de que a jurisdição estatal surge, como “método heterônomo de composição de disputas por um terceiro alheio ao conflito”[10], a partir da Arbitragem, que, por sua vez remonta de 3.000 a.C pela cultura de Babilônicos e Hebreus para resolver os seus conflitos[11]. Nesse sentido, sendo a base da jurisdição estatal identificada na atividade de particulares para a dissolução de conflitos em uma sociedade, o monopólio Estatal para tal encargo já encontra nesse ponto a primeira possibilidade de fazer justificar a sua quebra.

O mesmo poderio estatal, que buscou resolver o problema do domínio exagerado das partes sobre o procedimento judicial, mostrava-se já enfraquecido quanto à sua capacidade de exercer de forma monopolística a dissolução dos conflitos em sociedade. Tanto é que, a partir da década de 1970 a jurisdição estatal passou a ser duramente questionada em sua capacidade, dada a necessidade de se garantir à sociedade os novos direitos sociais e difusos que passaram a ser exigidos, além da já corriqueira reclamação sobre a lentidão, o excesso de formalidades e o custo envolvido em tal atividade.[12] Muito em razão de tais problemas destacados, motivou-se a realização do amplamente conhecido Projeto Florença de Acesso à Justiça, conduzido por Mauro Cappelletti e outros importantes juristas, buscando alternativas à facilitação do acesso à obtenção de direitos e resolução de conflitos.[13]

De igual modo, também na década de 1970, o jurista norte-americano Frank Sander apresentou na Pound Conference um estudo sobre as variadas modalidades de resolução de disputas[14], abrindo espaço para o que hoje se convencionou chamar de Justiça Multiportas. Em outras palavras, buscou-se fomentar ainda mais a mediação a conciliação e a arbitragem como metodologias verdadeiramente adequadas para a realização dissolução de uma gama de conflitos entre sujeitos, sobretudo aqueles de caráter bipolar e patrimonial, que justificavam boa parte dos processos em tramitação perante o judiciário estatal.

Não por acaso, o CPC/2015 reconhece em seu artigo 3º a inserção de tais métodos de resolução de conflitos dentro do que se entende de apreciação jurisdicional contra ameaça ou lesão à direitos, embora a divisão promovida pelo artigo dê a entender certo caráter supletivo de tais modalidades em relação à jurisdição estatal[15].

De modo semelhante, mencionando-se a arbitragem, a Lei Federal n. 9.307/1996 aborda o procedimento arbitral de resolução de litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, encaminhando-se à arbitro isento, devidamente selecionado de acordo com sua capacidade técnica para resolver os litígios determinados, realizando aquilo que, invariavelmente, desaguaria diretamente na jurisdição estatal. Arbitragem esta que, além de ser notoriamente legitima e capacitada como método de resolução de conflitos, tem constitucionalidade reconhecida pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal[16].

Fato é que, a partir do surgimento e difusão de tais metodologias alternativas para a resolução de controvérsias, inegavelmente se demonstra que a jurisdição não é mais monopólio exclusivo do Estado. Afinal, abre-se a possibilidade para que seu exercício também se dê por particulares, tornando mais necessário o resguardo de garantias processuais mínimas para a condução da resolução da questão conflituosa não demande a existência de um indivíduo (juiz) ou entidade (tribunal) investido dos poderes do Estado para tal desiderato.[17]

A noção de jurisdição como sendo uma atividade exclusiva do Estado corrobora à perpetuação do monopólio estatal sobre a atividade de dirimir controvérsias.

O Estado, frente à análise em apreço, afeta ao campo do direito processual, tem em seu bojo uma estrutura responsável pela realização da jurisdição, conformada no Judiciário. Este sim, inexiste em ambientes privados, não pode ser comparado à atividade arbitral ou qualquer método de solução alternativa de disputas. A sua composição, sobretudo por juízes e tribunais, lhe caracteriza como único, o que pode ainda suscitar a defesa de um monopólio de jurisdição exclusivamente realizada pelo Estado. Monopólio este quase intangível, dada sua magnitude.

Contudo, é preciso se enxergar a atividade jurisdicional do Estado (judiciário), como sendo uma das formas existentes de jurisdição, sob pena de se continuar relegando a importância das demais técnicas[18] igualmente habilitadas para realizar aquilo que a jurisdição estatal realiza (como a arbitragem, os métodos afetos à justiça multiportas, ou outros que eventualmente possam ser criados, como se apresenta das soluções atuais de tecnologia). Afinal, a jurisdição também é realizada pelo judiciário, mas não pode se resumir apenas na atividade deste.

O que se advoga, nestes apontamentos, não é a ruptura com a jurisdição exercida pelo Estado, mas sim que se admita a possibilidade concreta de existência de jurisdição estatal e jurisdição não estatal, devendo-se legitimar a existência de jurisdição não por exercício de poder, mas sim pela processualização de sua atuação dentro dos limites da lei[19], seja dentro ou fora da estrutura institucionalizada do Estado[20].

[1] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Teoria Geral do Processo. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 86.

[2] “Estas condiciones jurídicas son cómodas y beneficiosas para las clases ricas, porque cultas como son y bien acondicionadas, si hace falta, pueden tomar oportunamente la iniciativa. En cambio las pobres, que para defender su derecho tropiezan con un mecanismo tan complicado como es el procedimiento, sin consejo y malamente representadas, deben recoger de la pasividad judicial gravísimos perjuicios.”. (MENGER, Anton. El Derecho Civil y los Pobres. Madrid: Libreria General de Victoriano Suárez, 1898, p. 122.)

[3] “[…] el Juez debería proceder en el litigio de oficio. Una vez concedido al rico el derecho de hacerse representar por Abogado, el Juez debería procurar establecer un equilibrio entre las partes, asumiendo la representación de la parte pobre. Bien sé que la aplicación de estas soluciones en la administración del Derecho civil tropezaría con algunas, dificultades técnicas; pero ante los defectos de la actual condición jurídica, en la cual, á la disparidad del derecho, se suma la de los procedimientos, aquéllas dificultades no hay para qué tomarlas en cuenta. La aplicación de esas soluciones requeriría, naturalmente, una reconstitución de las leyes relativas á las funciones de los Tribunales. En el período transitorio, aquellas funciones judiciales podrían confiarse á los Abogados de los pobres, los cuales podrían ser nombrados en número suficiente y pagados por el Estado. Estos Abogados no deberían, sin embargo, assumir la defensa de otros pleitos ó causas que no fueran los de los pobres.” (MENGER, Anton. El Derecho Civil y los Pobres. Madrid: Libreria General de Victoriano Suárez, 1898, p. 126-127.)

[4] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Teoria Geral do Processo. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 101.

[5] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Teoria Geral do Processo. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 129.

[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. vol. 1. 58ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 103; ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. vol. 1. 1ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 390.

[7] MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de Direito Processual Civil Moderno. 3ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 56; FREITAS CÂMARA, Alexandre. O Novo Processo Civil Brasileiro. 3ª. ed. São Paulo: Gen Forense, 2017, p. 40; GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil. vol. 1. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2015, p. 114.

[8] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel.  Novo Curso de Processo Civil. Teoria do Processo Civil. vol. 1. 3ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 108-109.

[9] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 4ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018, p. 16.

[10] SOARES, Carlos Henrique. Lições de Direito Processual Civil. 2ª. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 54.

[11] SOARES, Carlos Henrique. Lições de Direito Processual Civil. 2ª. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 41.

[12] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Teoria Geral do Processo. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 103.

[13] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988, 69-73.

[14] Cf. SANDER, Frank. Varieties of dispute processing. In: LEVIN, A. Leo; WHEELER, Russell R. The pound conference: perspectives on justice in the future. Saint Paul: West Publishing Co, 1979.

[15] Como aponta Daniel Neves, segundo o qual a arbitragem não ultrapassa a barreira de uma equivalente jurisdicional, não se confundindo com a jurisdição. (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 9ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 78-79.)

[16] Em linhas gerais, o reconhecimento ocorreu a partir da análise de um recurso em processo de homologação de sentença estrangeira (SE 5.206), no qual uma empresa espanhola buscava o reconhecimento de validade de um laudo emitido em sentença arbitral proferida na Europa em 1995, o que foi indeferido. Com o advento da lei de arbitragem em 1996, a qual tornaria dispensável a homologação do mencionado laudo, a questão chegou ao STF para apreciação, tendo o Ministro Moreira Alves suscitou a questão da constitucionalidade da lei.

[17] CABRAL, Antônio do Passo. Per un Nuovo Concetto di Giurisdizione. In: BRIGULIO, Antonio et al (Orgs.). Scritti in Onore di Nicola Picardi. vol. 01. Pisa: Pancini Editore, 2016, p. 366.

[18] Aroldo Plínio Gonçalves sintetiza que “a noção geral da técnica é de conjunto de meios adequados para a consecução dos resultados desejados, de procedimentos idôneos para a realização de finalidades.” (Grifamos.) (GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 2ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 16.). Nesse sentido, ao se vislumbrar que cada atividade carrega consigo diferentes métodos para a realização de finalidades, que, quanto à jurisdição devem ter objetivo muito claro (principalmente de propiciar a proteção e efetivação de direitos fundamentais), mostra-se viável pensar a jurisdição estatal (judiciário) como mais uma técnica ou metodologia habilitada a realizar os objetivos que se quer para a atividade da jurisdição.

[19] FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 139. A respeito, confira-se ainda o apontamento feito em outro texto desta coluna, acerca da legitimidade decisória (https://www.contraditor.com/pensando-a-legitimidade-decisoria-a-partir-do-processo/).

[20] Cabral também relembra o reconhecimento de outros tipos de atividades marcadamente jurisdicionais, como é bastante claro na existência de uma jurisdição de povos indígenas ou quilombolas, que analisam e decidem as controversias no seio de sua própria organização social. Tal reconhecimento já ocorre em países como os Estados Unidos, África do Sul, Bolívia e Colômbia, como traz a lume, existindo ainda um sistema de reconhecimento de preclusões entre as diferentes jurisdições existentes. (CABRAL, Antônio do Passo. Per un Nuovo Concetto di Giurisdizione. In: BRIGULIO, Antonio et al (Orgs.). Scritti in Onore di Nicola Picardi. vol. 01. Pisa: Pancini Editore, 2016, p. 366.); De igual sentido, Marcelo Barbi Gonçalves trabalha a existência de jurisdição indígena como sendo “jurisdição paraestatal”, tal como ocorre com a justiça eclesiástica, reconhecendo a necessidade de se atribuir amplo espectro jurisdicional à atividade de resolução de conflitos no seio interno das tribos. Segundo o pesquisador, não haveria de se conceber que o indivíduo inserido em uma cultura ou sociedade, como é o caso dos indígenas, fosse submetido à jurisdição de povos alheios aos seus usos e costumes, como seria o caso de lhes encaminhar à jurisdição estatal tradicional. Esse reconhecimento pressuporia, tal como apontado por Cabral, a necessidade se se criar relações de preclusão entre as jurisdições, vedando que a mesma conduta praticada ou situação jurídica reconhecida pudesse ser avaliada por duas (ou mais) jurisdições distintas, com o perigo de ainda se aferirem juízos conflitantes. (GONÇALVES, Marcelo Barbi. Teoria Geral da Jurisdição. Salvador: Juspodivm, 2020.)

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Autor

  • Mestre em Direito Processual pela PUC Minas. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade FUMEC/MG. Advogado e Professor Universitário. Membro da ACADEPRO e da Comissão de Processo Civil da OAB/MG.

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