EVIDENCIANDO MAIS UMA TÉCNICA JURISDICIONAL DESPROCESSUALIZADA – ART. 311 DO CPC/2015

Uma das temáticas que vêm sendo abordadas nas colunas pretéritas, implícita ou explicitamente, é a relação das técnicas empreendidas em procedimentos nos espaços da função jurisdicional e sua respectiva compatibilidade (ou incompatibilidade) com as bases teóricas do devido processo, constitucionalizadas em consonância com o Estado de Direito Democrático.

Para hoje, então, o que se pretende é demonstrar ainda mais cabalmente que há técnicas pouco inquiridas sob o marco teórico constitucionalizado do devido processo e que, justamente por força dessa inserção acrítica no ordenamento jurídico, essas técnicas não se coadunam com a processualidade, respondendo unicamente ao escopos[1] de uma jurisdição ensimesmada.

Para tanto, as duas técnicas de tutela provisória (art. 294, CPC/2015)[2] vigentes no Código de Processo Civil serão comparadas: a tutela de urgência e a tutela de evidência, sendo aquela uma técnica processual compatível com o devido processo constitucionalizado e esta uma técnica meramente jurisdicional, que somente homologa uma realidade hostil (judiciário ineficiente) em prejuízo da cognição exauriente e de vários outros princípios processuais (contraditório, ampla defesa).

Pois bem. Tutela provisória de urgência (art. 300, CPC/2015)[3] é o nome dado à técnica processual garantidora do princípio constitucional do acesso à jurisdição em situações fáticas nas quais o inexorável ônus temporal do procedimento de cognição exauriente puder comprometer a utilidade do provimento pretendido pela parte postulante. Cuida-se de técnica que excepciona o requisito da certeza para o empreendimento de medidas executivas[4], sumarizando a cognição meritória de modo a permitir a transformação da realidade prática a partir juízos de mera probabilidade (e não de certeza).

Por cognição há que se entender a evolução dialógico-racional do discurso procedimental e processualmente formado entre os sujeitos processuais, visando à obtenção do maior grau de certeza possível (exauriência) sobre os fatos narrados, sobre as provas produzidas e sobre os direitos postulados. Quanto maior o grau de cognição (quanto mais exauriente), maior o grau de certeza quanto aos fatos narrados, as provas acopladas e os direitos postulados em uma demanda, o que permite a enunciação da norma concreta e individual da melhor maneira possível para posterior execução.

Lado outro, o interesse processual (necessidade-adequação-utilidade)[5] é pressuposto (técnica processual demarcatória do discurso) decorrente do princípio constitucional do acesso à jurisdição (art. . Por isso, a técnica do interesse processual demanda que a espacialidade procedimental da jurisdição (função estatal) seja a via necessária para análise da pretensão da parte; demanda que a inércia jurisdicional seja quebrada através do procedimento adequado à específica pretensão da parte; e por fim, demanda que a quebra dessa inércia seja justificada por sua utilidade à parte postulante

Mesmo porque, não haveria razão para o empreendimento de um custoso procedimento jurisdicional se, ao final, não houvesse transformação útil da realidade prática (ainda que essa utilidade seja meramente declaratória). Ora, produz-se a norma individual e concreta nos espaços procedimentais cognitivos da jurisdição justamente para que sirva como enunciado deontológico indexador das transformações da realidade prática, estas conjuradas em procedimentos executivos.

Assim, se o interesse processual – como pressuposto para a postulação pela parte em procedimentos em curso na função jurisdicional – exige que o provimento pretendido seja útil à parte, é decorrência lógica disso que essa utilidade não pode ser comprometida por conta da demora do próprio procedimento jurisdicional instaurado.

Nessa esteira, em algumas situações fáticas de urgência, o inexorável ônus temporal da procedimentalidade de cognição exauriente pode sacrificar a utilidade do provimento pretendido pela parte, o que justifica o implemento de técnicas de sumarização da cognitio, a autorizarem medidas de cunho executivo (incluídas as acautelatórias) com escoro em um juízo de mera probabilidade.

Assim, as tutelas provisórias de urgência nada mais são do que técnicas que, em nome da utilidade (acesso à jurisdição), possibilitam a existência de procedimentos executivos (atividade processual de transformação da realidade prática) antes mesmo de consolidada a cognição exauriente, isto é, antes da obtenção de um dos três requisitos[6] para qualquer execução (judicial ou extrajudicial): a certeza.

É exatamente por essas razões que os requisitos autorizadores da concessão da tutela provisória de urgência (art. 300, CPC/2015) consistem na probabilidade do direito alegado e no risco de dano ou risco ao resultado útil do procedimento instaurado, eis que a medida executiva pleiteada deve ser fundamentada por um juízo cognitivo sumário sobre a probabilidade (e não certeza) do quanto postulado pela parte, enquanto a interdição da cognição exauriente somente se justifica por uma situação de urgência (risco iminente à utilidade).

É perceber que a técnica de antecipação de efeitos executivos por meio da tutela provisória de urgência somente existe por consequência de um impasse insolúvel e inexorável entre o resguardo da utilidade prática da atividade jurisdicional (conseguinte lógico do acesso à jurisdição) e a potencial fatalidade dessa utilidade pelo incontingente (necessário) fator tempo.

O encurtamento cognitivo é, portanto, sacrifício lógico da salvaguarda da utilidade (acesso à jurisdição) em uma situação de urgência.

A mesma lógica definitivamente não socorre à técnica das tutelas de evidência (art. 311, CPC/2015)[7], que, mesmo inexistindo urgência que comprometa a utilidade do provimento a ser preparado à exauriência cognitiva (norma jurídica concreta e individual), excepciona (ou antecipa) o requisito da certeza e permite a transformação da realidade prática antes mesmo de formada a norma concreta e abstrata.

Ou seja, antes mesmo que se saiba como as coisas devem ser (deontologia formada pela cognição), as coisas passam a ser (ontologia implementada pela execução).

Ao contrário da tutela de urgência, a tutela da evidência não responde a um fator incontingente (necessário) como o perecimento da utilidade da pretensão postulada pela corrosão temporal, mas tão somente a um fator totalmente contingente, dentro do espectro da escolha legislativa.

O sacrifício da certeza pela exauriência do discurso de conhecimento sedimentado em um espaço jurisdicional procedimentalizado e processualizado se dá, nas tutelas de evidência, por um simples contingenciamento legislativo (escolha), em nome de uma leitura equivocada do que se chama razoável duração do procedimento.

É que para os arautos da sumarização cognitiva (talvez por a ela se identificarem a nível pessoal), a razoável duração do procedimento não é um princípio (norma) enunciado como mandamento constitucional direcionado à eficiência da administração da jurisdição, mas sim à precarização da processualidade. Como quase sempre, esse efeito também advém da confusão instrumentalista, eis que se o processo é instrumento da jurisdição, é aquele que deve atender (se adequar) aos anseios e contingencias desta.

No mesmo vértice, Francisco Dourado Andrade, em obra especialíssima sobre o assunto, chega a tal tutela nem como técnica, mas como simples “atividade jurisdicional”:

“[…] Tutela de evidência é uma atividade jurisdicional que pratica a tutela interdital de direitos na forma dos velhos discursos de celeridade e efetividade, além de representar um rito sumaríssimo (técnica irracional) pelo exercício da jurisdição sem processo e sem procedimento, revela-se manifestamente inconstitucional o art. 311 do Código de Processo Civil de 2015.”[8]

Aqui, novamente, o princípio da eficiência adquire a dimensão de princípio da ineficiência (como tratamos em coluna anterior)[9], visto que parte-se do pressuposto concretizado (como se imutável fosse) de que a jurisdição é (e sempre será) morosa e, portanto, a processualidade (e procedimentalidade) que deve se adequar a essa realidade tão necessária (direito homologando uma realidade trágica).

Com isso, tem-se que a tutela de evidência é técnica que denota forma de “jurisdição sem processo”, o que é incompatível com a ordem constitucional vigente, na medida em que abrevia a cognitio em nome de uma deturpada versão dos mandamentos de celeridade e eficiência. Cuida-se de mais uma das gambiarras (atecnias) procedimentais não devidamente compatibilizadas com os marcos teóricos processualmente insculpidos no ordenamento jurídico.

[1] Sim, uma vez mais, a referência é aos “escopos magnos” da jurisdição. (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999).

[2]  Art. 294. A tutela provisória pode fundamentar-se em urgência ou evidência.

[3]  Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

[4] “Execução é a atividade processual de transformação da realidade prática. Trata-se de uma atividade de natureza jurisdicional, destinada a fazer com que aquilo que deve ser, seja” (CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo Civil brasileiro. – São Paulo: Atlas, 2015, p.315).

[5] Essa visão trinomial do interesse processual pode ser constatada em boa parte dos manuais de processo, como por exemplo, na obra de Luiz Rodrigues Wambier: “O interesse processual nasce, portanto, da necessidade da tutela jurisdicional do Estado, invocada pelo meio adequado, que determinará o resultado útil pretendido do ponto de vista processual. É importante esclarecer que a presença do interesse processual não determina a procedência do pedido, mas viabiliza a apreciação do mérito, permitindo que o resultado seja útil, tanto nesse sentido, quanto no sentido oposto, de improcedência. A utilidade do resultado se afere diante do tipo de providência adequada.” (WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de processo civil, volume 1: teoria geral do processo de conhecimento. 9ª Ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 p. 138)

[6]  CPC/2015: Art. 783. A execução para cobrança de crédito fundar-se-á sempre em título de obrigação certa, líquida e exigível.

[7] CPC/2015: Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: I – ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; II – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; III – se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa; IV – a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável. […] Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente.

[8] ANDRADE, Francisco Rabelo Dourado. Tutela de evidência como jurisdição sem devido processo no código de processo civil de 2015. Belo Horizonte, 2015.

[9]  https://www.contraditor.com/o-principio-da-ineficiencia-e-as-gambiarras-jurisdicionais/

Autor

  • Advogado, graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG), especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Desenvolvimento Democrático (IDDE), mestre em Direito Processual pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PPDG-PUC/MG), na linha "O processo na construção do Estado Democrático de Direito".

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