12. A MOTIVAÇÃO ESCRITA E A ESCRITA DA MOTIVAÇÃO

Os sufixos «-dade» e «-idade» se agregam a adjetivos para formarem substantivos que expressam estadosituação ou resultado [ex.: legítimo + -idade = legitimidade; igual + -dade = igualdade]. Já os substantivos que expressam ação ou processo se formam pela junção dos sufixos «-ção» e «-ação» [ex.: legítimo + -ação = legitimação; igual + -ação = igualação]. Nesse sentido, legitimidade é o resultado de uma legitimação, i. e., o estado que ocorre após a ação legitimadora ter sido concluída com êxito; da mesma forma, igualdade é o resultado de uma igualação, i. e., o estado que acontece após a ação de igualação ter sido bem-sucedida. No entanto, existem radicais inóspitos aos sufixos «-dade» e «-idade»; nesse caso, substantivos que expressam estadosituação ou resultado se formam pelos sufixos «-ção» e «-ação». É o que se passa com palavras como politizaçãodecisãosubmissão e motivação, que exprimem tanto ação quanto resultado. No caso do substantivo decisão, por exemplo, tem ele duplo sentido: 1) decisão como a ação ou o processo de decidir; 2) decisão como o resultado da ação de decidir, como o produto final que decorre após concluído o processo de decisão. Semelhantemente se dá com a palavra motivação: 1) motivação como a ação de motivar [= motivação stricto sensu]; 2) motivação como o resultado da ação de motivar, como o produto final que decorre após concluído o processo de motivação [= «motividade»]. Entender esse duplo sentido é axial no direito, visto que a motivação é objeto de um importantíssimo dever jurídico: o dever de motivação das decisões judiciais [CF/1988, art. 93, IX; CPC, art. 11, caput] e das decisões administrativas [Lei 9.784/1999, artigos 2º, caput, e 50]. No Brasil, essa motivação é sempre escrita: a) no âmbito jurisdicional nacional, «os despachos, as decisões, as sentenças e os acórdãos serão redigidos, datados e assinados pelos juízes» [CPC, art. 205, caput] e, quando esses pronunciamentos «forem proferidos oralmente, o servidor os documentará, submetendo-os aos juízes para revisão e assinatura» [CPC, art. 205, § 1º]; b) no âmbito administrativo federal, todos «os atos do processo devem ser produzidos por escrito […]» [Lei 9.784/1999, art. 22, § 1º]; ademais, «a motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito» [Lei 9.784/1999, art. 50, § 3º]. Assim sendo, pode-se afirmar que a ideia de motivação escrita em sentido amplo também tem duplo conteúdo: 1) motivação escrita em sentido estrito [= ação ou processo de motivar por escrito]; 2) «motividade» escrita [= produto final da ação de motivar por escrito, arrazoado decisório escrito].

No direito processual positivo brasileiro, a «motividade» escrita [= produto final da escrita = arrazoado decisório] é qualificada. De acordo com o § 1º do artigo 489 do CPC, «não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento». Nota-se que o dispositivo legal tenta definir «motividade», explicar quando a ação de motivar é bem-sucedida. Como cediço, uma definição pode ser: 1.1) intensional [especifica as condições necessárias e suficientes para algo ser de um conjunto específico] ou 1.2) extensional [traz uma lista de objetos que são membros de um conjunto específico]; 2.1) positiva [diz o que algo é] ou 2.2) negativa [diz o que algo não é]. No caso do § 1º do artigo 489 do CPC, tem-se uma definição extensional negativa: traz-se uma lista que explica as situações em que a ação de motivar não é exitosa e em que, portanto, não há «motividade». É bem verdade que as definições extensionais negativas devem ser evitadas, sob pena de demasiada amplitude. Não sem razão, com o auxílio de uma estratégia retórica bem realizada (aqui, retórica = «retórica negra», no sentido que lhe dá MICHEL MEYER), é possível tomar-se uma decisão sem qualquer consumo de atenção e somente depois se escolherem os fundamentos corroborantes, sem se incorrer com isso em qualquer inciso do § 1º do artigo 489 do CPC. Enfim, o dispositivo inibe, mas não impede o decisionismo voluntarista. De todo modo, trata-se de um enorme avanço legislativo, já que se permite um controle objetivo-racional maior sobre as decisões judiciais e, assim, um constrangimento jurídico-normativo maior sobre os julgadores.

Por isso, não basta qualificar o resultado-da-ação-de-escrever (a «motividade»): é preciso que a ação-de-escrever (a motivação) também se qualifique. Ou seja, devem ser «modeladas» tanto a escrita-resultado quanto a escrita-ação. Até hoje, porém, persiste uma enorme lacuna: apenas o resultado-da-ação-de-escrever (a «motividade») é tematizado e integra o conjunto das enunciações jurídico-dogmáticas. O processo meditativo de escrita em si (a motivação) ainda se encontra negligenciado, entre parêntesis, nas bordas de uma indeterminada região extrajurídica e, portanto, como um problema dogmático informulado. Ainda é um não-dito. Contudo, para além de uma exigência de «motividade», deve haver uma exigência de motivação. Em lugar de (re)vestirem as suas decisões irrefletidas com «motividade», os julgadores devem demorar-se – mediante um «abandono controlado» – num itinerário contemplativo de motivação. O cuidadoso caminho reflexivo (portanto, não-metodológico) a empreender-se não deve ir de uma decisão definitiva imotivada a uma decisão definitiva motivada [D → D+M], mas de um vazio decisório a uma decisão provisória motivada [Ø → (D’↔M’)] e, em seguida, de uma decisão motivada provisória a uma decisão motivada definitiva [(D’↔M’) → (D↔M)]. A «motividade» não deve complementar um jato impulsivo decisório, mas brotar de um sereno trajeto decisório. Ela não deve acoplar-se intrusivamente a uma decisão pressentida ou precipitada, mas despontar no curso da maturação decisória. A decisão deve tomar-se no processo de motivação, mediante o processo de motivação e à medida que o processo de motivação se desenvolve; por sua vez, a «motividade» deve nascer no processo decisório, mediante o processo decisório e à medida que o processo decisório se desenvolve. Deflagrado o processo decisório, deflagrado o processo motivacional; concluído o processo motivacional, concluído o processo decisório. Logo, deve haver sincronia, não heterocronia, entre o processo decisório e o processo motivacional. O processo de motivação deve ex-pelir a decisão, mas a decisão não deve in-pelir o processo de motivação. Por sua vez, o processo de motivação deve implicar [in-plicar] a decisão, não se aplicar [ad-plicar] a ela como um adereço. Enfim, «motividade» e decisão não devem ser dados anexos [ad-nexos] um para o outro, mas inexos [in-nexos]. Um deve fluir desde dentro do outro [in-fluir], não fluir desde fora ao encontro do outro [ad-fluir]. Daí por que na teoria do direito só se deve estudar decisão e motivação como co-temática: embora ocupem zonas epistemológicas distintas entre si, teoria da decisão e teoria da motivação devem formar uma investigação concomitante, um par inseparável, que se reforçam, se alimentam e se estimulam reciprocamente, como autênticos «parceiros espirituais». 

Na verdade, os processos inter-in-plicados de decisão e motivação devem concentrar-se num imperturbável movimento circular de vaivém contínuoi) uma descida dos fundamentos-de-direito aos fundamentos-de-fato [«incidência»]; ii) uma subida dos fundamentos-de-fato aos fundamentos-de-direito [«subsunção»]; iii) a eclosão de uma decisão motivada interina; iv) uma nova descida – retificada – dos fundamentos-de-direito aos fundamentos-de-fato [«re-incidência»]; v) uma nova subida – retificada – dos fundamentos-de-fato aos fundamentos-de-direito [«re-subsunção»]; vi) a nova eclosão de uma decisão motivada interina, agora retificada; vii) uma outra descida – re-retificada – dos fundamentos-de-direito aos fundamentos-de-fato [«re-re-incidência»]; viii) uma outra subida – re-retificada – dos fundamentos-de-fato aos fundamentos-de-direito [«re-re-subsunção»]; ix) outra eclosão de uma decisão motivada interina, agora re-retificada. E, com isso, a decisão motivada vai constituindo-se sem atalhos, dentro de uma comedida demora, a partir de uma circum-abrangência dinâmica, É evidente que o juiz não parte de um ponto zero ou de uma tábua rasa, mas de uma opinião intuitiva prévia sobre o caso ou, quando muito, de um esboço não-deliberado de decisão motivada [= fundo pré-compreensivo]. Esse esboço escrito sofre, porém, lentas e contínuas reestruturações, correções e integrações textuais. De todo modo, cabe ao juiz proteger a si e às partes da sua falibilidade psíquico-cognitiva, da arbitrariedade das suas opiniões particulares e do ocaso dos seus hábitos de pensamento que passam despercebidos. Para tanto, deve mergulhar no acervo probatório, aprofundar-se nos fundamentos trazidos pelas partes, dialogar com os argumentos desenvolvidos por elas, interpretar-aplicar os textos de direito positivo, inteirar-se de posicionamentos doutrinário-jurisprudenciais, compreender [= co-apreender] todos esses elementos, aperfeiçoar o seu projeto preliminar e reconfigurá-lo de modos novos, substituindo-o sucessivamente por outros mais adequados. Em outras palavras: o juiz deve abandonar a sua sensação de conforto permitindo constranger-se por um complexo de elementos objetivos externos, que o arrancam do solipsismo e que o compelem ao refazimento serial do seu projeto primeiro subjetivo. Todavia, tendo em vista que a roda do convencimento gira ad æternum, é necessário definir, «finir», fixar um fim, interromper esse «processo-sempre-a-caminho», fechar o projeto de decisão motivada. É necessário proceder-se a um «corte preclusional» e proferir-se uma decisão motivada definitiva. Não se pode permitir ao juiz uma eterna circunvolução, ainda que o fechamento anteceda por vezes o ponto otimal da decisão-motivação. Afinal, decidir é isto: de-cidir, do latim de [= fora, de cima a baixo] + cædere [= cortar, matar], que significa «cortar fora ou eliminar outras possibilidades», «resolver mediante um corte de cima a baixo, de A a Z, do alfa ao ômega, de ponta a ponta».

Fica a pergunta, porém: como pressionar a autoridade julgadora a se demorar no processo de motivação, enleando nele o próprio processo decisório? Como garantir que, para além de entregar uma decisão motivada com contornos específicos, o juiz se entregue a um processo qualificado de decisão e motivação? Prevê-se sanção negativa ao juiz voluntarista, que primeiro decide por automatismo, sem esforço, e só depois racionaliza, indo opacamente ao encontro de fundamentos pré-moldados? Prevê-se sanção positiva ao juiz antivoluntarista, que, à medida que fundamenta por escrito, concebe passo dopo passo – entre idas e vindas – a sua decisão? Decerto é impossível uma repressão ou uma premiação jurídico-normativa, porquanto é impossível um controle voluntário externo pari passu sobre o modo relacional entre o juiz e a motivação decisória. Não existe um observador privilegiado, que, infiltrado na alma do juiz, revele os seus (anti)voluntarismos. Sempre haverá, pois, a angústia dessa indeterminação. Logo, não há como forçar nem como estimular o juiz a uma reflexão comedidamente demorada na escrita da motivação. Com isso, sob o ponto de vista formal, a garantia fundamental da motivação [CF/1988, art. 93, IX] acaba circunscrevendo-se a uma garantia meramente vestual e protocolar de «motividade». E é disso que se aproveitam os justiceiros de plantão. Entretanto, se não é possível coagir nem incentivar o juiz por meio de um discurso normativo, ao menos é possível constrangê-lo por meio de um discurso doutrinário. Trata-se de um constrangimento epistemológico ou epistêmico [LENIO LUIZ STRECK], que – mediante críticas fundamentadas – aponta as iniquidades da postura solipsista «decido-primeiro-e-só-depois-fundamento». Em tempos de protagonismo judicial, é papel da doutrina auxiliar na erradicação desse «estado inconstitucional de coisas». Afinal de contas, a Constituição Federal de 1988 instituiu um Estado democrático de direito legislado, não um Estado aristocrático de direito jurisprudencial. Em consequência, ainda vige a primazia da omni-lateralidade da lei aprovada pelos representantes eletivos do povo, não da uni-lateralidade do juiz aprovado em concurso público ou nomeado politicamente. O querer do juiz maduro sempre se dobra às fontes legais do direito e, portanto, se resigna à volonté du peuple souverain. Pois maturidade é justamente isto: aceitação adulta. Por sua vez, as fontes legais do direito não devem dobrar-se ao querer do juiz mimado, como se elas compusessem um kit infantil de pecinhas manipuláveis. Assim, um excelente (re)começo para a doutrina é voltar a doutrinar. Doutrina = doctrina = docere [ensinar] + –tor [sufixo que indica agente, aquele que realiza a ação] + –ina [sufixo que indica relação, pertinência] = ensino por quem tem capacidade doutoral máxima. Portanto, voltar a doutrinar significa voltar a ensinar com ascendência, influência, liderança. É voltar a educar os juízes na autocontenção, na subserviência ao Estado legislativo parlamentar e na motivação como garantia dessa subserviência.

Autor

  • Juiz Federal em Ribeirão Preto, Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP, Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual, Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual

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