O juiz em especial é, como portador do ´Terceiro Poder` do Estado, um igual do legislador. Na medida em que, por meio da interpretação objectivista, apenas deixa valer a lei com este sentido, ele defende a sua própria autonomia.
Karl Engisch
– I –
A reclamação é garantia constitucional processual estabelecida no art. 102, I, alínea “l”, bem como no art. 105, I, alínea “f” da Constituição Federal. Ambos os dispositivos estabelecem o instituto para, em relação ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça (i) preservar-lhes as respectivas competências jurisdicionais e (ii) garantir-lhes a autoridade de suas decisões.
Discutiu-se consideravelmente acerca de qual o tipo de garantia pertencente à sistemática dos meios processuais de impugnação cuidar-se-ia a reclamação, pois, a depender do enquadramento a lhe ser conferido, a definição quanto ao procedimento, a espécie de decisão e a competência do órgão jurisdicional para dela conhecer, processar e julgar ganham relevo.
Desde sua origem no sistema brasileiro, inicialmente fruto de construção jurisprudencial do STF calcada na teoria dos poderes implícitos (implied and inherent powers theory), até a chegada do Código de Processo Civil de 2.015[1], diversas naturezas jurídicas lhe foram imputadas, tais como: (i) recurso[2], (ii) incidente processual[3] e (iii) direito de petição[4].
Parece-nos, entretanto, mais acertada a natureza jurídica de ação[5], notadamente a partir do advento do CPC (arts. 988 usque 993), ao estabelecer que a reclamação: (i) pressupõe iniciativa da parte para o manejo; (ii) objetiva a correta aplicação do direito, impedindo afronta a decisões vinculantes ou usurpação da competência dos Tribunais; (iii) instaura lide; (iv) cria relação processual-procedimento próprios e; por fim, (v) sua decisão perfaz coisa julgada.
Assim, o instituto pode ser conceituado como sendo ação cujas finalidades são: (i) assegurar a competência do STF e do STJ[6] nas hipóteses em que quaisquer decisões ou atos emanados pelos órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta nas esferas federal, estadual ou municipal venham a afrontá-la; (ii) garantir a autoridade das decisões vinculantes proferidas pelo STF/STJ e; por fim, (iii) garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida e julgada ou de aresto proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, percorridas as instâncias ordinárias.
– II –
Embora, como asseverado, a reclamação constitua ação que atende a diversas finalidades (CPC, art. 988), interessa-nos abordar, especificamente, as hipóteses que dizem respeito a garantia da observância de decisões vinculantes nos moldes gizados no art. 988, III e § 5º, II do CPC.
Proferido o julgamento pelo STF e fixada a tese vinculante, havendo decisões judiciais ou administrativas que as violem, fica franqueado às partes legitimadas e ao Ministério Público o ajuizamento da reclamação: (i) diretamente no Tribunal, cuidando-se de transgressão a (i.1.) enunciados de súmulas vinculantes e (i.2.) decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade[7] e; (ii) desde que (ii.1.) antes do trânsito em julgado da decisão reclamada e (ii.2.) esgotadas as instâncias ordinárias, na hipótese de a decisão judicial desatender ao comando vinculante firmado em (iii.1.) recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida e julgada e (iii.2.) recurso extraordinário repetitivo.
No âmbito do STJ, em contrapartida, a via da reclamação será oportunizada aos legitimados presentes as condicionantes (ii.1.) e (ii.2.), quando o objeto impugnado (=decisão judicial ou administrativa) estiver afrontando o parâmetro normativo consolidado em sede de recurso especial repetitivo.
Em relação ao significado de “esgotamento das instâncias ordinárias”, o art. 988, §5º, II do CPC é expresso em não admitir o manejo da reclamação para garantir a observância de decisões firmadas em RE-RG, RE repetitivo e REsp repetitivo antes do esgotamento das “vias normais”, entendida estas como sendo não só “a interposição dos recursos vocacionados à obtenção de decisão final no tribunal local”[8] (CPC, art. 1.021 c.c. art. 1.030, § 2º), mas igualmente “após a manifestação da presidência ou vice-presidência dos tribunais no momento da realização do juízo de admissibilidade de REsp e RE, não realizando juízo de retratação”[9]. Adota-se, portanto, em regra, o caráter subsidiário da reclamação[10].
– III –
No que diz respeito à compreensão do “parâmetro da reclamação”, STF e STJ possuem entendimentos colidentes e ambíguos. Vejamos.
Sabe-se que o parâmetro da reclamação deveria ser o conjunto de normas em nível constitucional – denominado bloco de constitucionalidade. Todavia, do ponto de vista estritamente processual, sabe-se que a discussão se reduz à ideia de confirmar se a interpretação fixada e aplicada pelo STF foi respeitada pelas demais instâncias do Poder Judiciário e demais entidades da Administração.
Com efeito, muito embora o art. 998, III e § 5º, II, pareça deixar claro que a vinculação aos precedentes compreende tanto as suas razões de decidir quanto o seu dispositivo (por força do efeito vinculante e erga omnes a eles estabelecidos por lei), permitindo que qualquer interessado ou MP possam manejar a reclamação quando o objeto (=ato reclamado) violar o parâmetro firmado pelo STF, a jurisprudência do Tribunal oscila[11], criando um ambiente de arrepsia jurídica.
O CPC, ao autorizar o aforamento da reclamação pelos legitimados (=partes interessadas ou MP) com o desígnio de garantir a observância do parâmetro consolidado tanto em controle abstrato (CPC, art. 998, III) quanto em controle difuso (CPC, art. 988, §5º, II), acolhe, logicamente, que todo e qualquer interessado, parte ou não no processo piloto/modelo/padrão no bojo do qual restou formado o paradigma tenha legitimidade para, fazendo uso da ação, oportunize ao STF/STJ conhecê-la, adequando o ato impugnado ao pronunciamento vinculante ou revendo-o/superando-o[12], sob pena de torná-la inócua, inútil e despicienda.
Desse modo, especificamente, em relação ao STF, não faz sentido que o mesmo Tribunal diante da legislação em vigor produza decisões que, por um lado, aceitam a reclamação como meio processual hábil a revisar parâmetros vinculantes forjados em controle difuso – como o fez o Min. Roberto Barroso na Rcl 30.210 (DJe 08.5.2018), ao propiciar a “revisão de tese, a fim de não engessar a jurisprudência à vista de novas necessidades ou de uma mudança de perspectiva com o passar do tempo” e o Min. Edson Fachin na Rcl 21.409 (DJe 25.4.2016), ao consignar que “por diversas vezes, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar reclamações, redefiniu o alcance e o sentido de suas próprias decisões apontadas como parâmetros da reclamação (…) porquanto a abertura hermenêutica da jurisdição constitucional exige a utilização da reclamação com todas suas potencialidades instrumentais” – e, por outro, também no ambiente do controle concreto, negam-na, ao fundamento de que o instituto não se presta a “garantir a autoridade de decisão proferida em processo de índole subjetiva, do qual não tenha participado o reclamante”, como consignou a Min. Rosa Weber na Rcl 40.257 (DJe 05/05/2020).
No STJ, recentemente, a garantia constitucional processual estabelecida no art. 105, I, alínea “f”, da CF e procedimentalizada no art. 988 do CPC recebeu um duro baque.
Considerando o arquétipo estabelecido pela lei processual para formação, controle e superação de pronunciamentos vinculantes, o Tribunal Superior, a partir do julgamento, por maioria, da Rcl 36.476 (Corte Especial, julg. 05.02.2020, DJe 06.03.2020)[13], resolveu pelo não cabimento da ação na hipótese de os legitimados, face a um pronunciamento destoante entre a solução conferida ao caso concreto e o paradigma normativo obrigatório, pretenderem a revisitação da tese firmada sobre a matéria.
Portanto, doravante, aos legitimados foi suprimido o uso da reclamação como meio processual adequado a provocar o STJ à reconstrução de conteúdos vinculantes dele originados.
Em síntese, os fundamentos contidos na Rcl 36.476 foram que: (i) “não há coerência e lógica em se afirmar que o parágrafo 5º, II, do art. 988 do CPC, com a redação dada pela Lei 13.256/2016, veicularia uma nova hipótese de cabimento da reclamação”, pois, segundo a Corte Especial “o parágrafo se inicia, ele próprio, anunciando que trataria de situações de inadmissibilidade da reclamação”; (ii) “a investigação do contexto jurídico-político em que editada a Lei 13.256/2016 revela que, dentre outras questões, a norma efetivamente visou ao fim da reclamação dirigida ao STJ e ao STF para o controle da aplicação dos acórdãos sobre questões repetitivas, tratando-se de opção de política judiciária para desafogar os trabalhos nas Cortes de superposição”; (iii) “a admissão da reclamação na hipótese em comento atenta contra a finalidade da instituição do regime dos recursos especiais repetitivos, que surgiu como mecanismo de racionalização da prestação jurisdicional do STJ, perante o fenômeno social da massificação dos litígios”; (iv) no regime de provimentos vinculantes, máxime os relativos aos REsp repetitivos “o STJ se desincumbe de seu múnus constitucional definindo, por uma vez, mediante julgamento por amostragem, a interpretação da Lei federal que deve ser obrigatoriamente observada pelas instâncias ordinárias”, sendo que “uma vez uniformizado o direito, é dos juízes e Tribunais locais a incumbência de aplicação individualizada da tese jurídica em cada caso concreto” e; por fim, (v) “em tal sistemática, a aplicação em concreto do precedente não está imune à revisão, que se dá na via recursal ordinária, até eventualmente culminar no julgamento, no âmbito do Tribunal local, do agravo interno de que trata o art. 1.030, § 2º, do CPC/15”.
Não obstante a possibilidade de as partes provocarem o Tribunal local para realização da distinção entre o mérito do seu recurso e o do paradigma vinculante extraído do REsp repetitivo, aliás, como é possível à luz dos arts. 10, 489, § 1º, VI e 927, §1º, do CPC, o fato é que, entre os cinco possíveis fundamentos que pudemos extrair da decisão, todos eles negam vigência ao art. 105, I, alínea “f” da CF c.c. o art. 988, §5º, II, do CPC, ao tolher dos legitimados o manuseio autônomo da reclamação tal qual previsto no ordenamento jurídico positivo.
Com efeito, sem embargo de clara supressão judicial (=uma espécie de reconhecimento de inconstitucionalidade despida da exigência fulcrada no art. 97 da CF) na utilização da garantia constitucional processual por parte dos legitimados, o que se nota do conteúdo da decisão da Corte Especial do STJ são extensas digressões político-jurídicas a respeito da melhor colmatação do instituto, notadamente, em relação ao seu cabimento para revisar ou superar provimentos vinculantes (CPC, art. 988, §5º, II).
Destarte, levando em sérias considerações “os propósitos para os quais um sistema normativo como o direito é criado (um sistema institucionalizado, planejador, pretensamente autoritativo) e o ambiente em que os brasileiros hoje vivem (…), é desejável que magistrados deem sequência ao planejamento jurídico-social, de modo a seguir aquilo que pode ser extraído do ponto de vista jurídico, mesmo que esse ponto de vista jurídico viole suas concepções sobre justiça”[14].
Ora, a decisão política foi tomada em seu habitat constitucional e adequadamente positivada no CPC de 2.015, restando-nos promover a interpretação do texto normativo. A arena propícia para rediscussão do acerto ou equívoco da opção política não é o Poder Judiciário (=in casu, o STJ), mas o Parlamento Nacional. Enquanto isso não for objeto de retomada através das competentes iniciativas legislativas (=projeto de lei), conformamo-nos com a missão do Poder Judiciário: a interpretação da norma positivada no ordenamento jurídico em vigor.
Dito de outro modo: a cizânia anterior à lei não pertence ao domínio jurídico e, portanto, contemptível rediscuti-la na decisão judicial. O imperativo da autocontenção inerente a atuação do Poder Judiciário no exercício de suas competências corresponde à necessidade de se respeitar o espaço político que foi concedido ao legislador ao regrar as hipóteses de cabimento da reclamação no horizonte do CPC em conformidade com a Constituição. Ao Judiciário é vedado, recorrendo a artificiais sopesamentos ou ponderações decidir de forma contrária ao texto legislado, salvo quando isso fundamentar-se diretamente no Texto Constitucional, o que, data venia, não nos parece nem de longe a hipótese.
A perpetuar-se o entendimento firmado na Rcl 36.476, o STJ retirará de forma oblíqua do ordenamento a ação direta para cassação judicial (CPC, art. 992) de provimentos dotados de eficácia vinculante. Vedado o uso da reclamação contra decisões de instâncias inferiores que tenham contrariado diretamente REsp repetitivo, a única via de acesso ao Tribunal Superior para a correção da desconformidade será dirigir um novo REsp.
Evidentemente que a utilização dos recursos, em termos gerais, parece-nos, em um sistema jurídico que não disponha de engenhos mais adequados e eficazes, de fato, a melhor das soluções.
Porém, tendo-se em mira o CPC atual, a interposição de novo REsp contra o acórdão proferido pelo órgão especial do Tribunal local – que, analisando recurso de agravo interposto contra a decisão do Presidente ou Vice-Presidente, mantém o posicionamento em desacerto com o parâmetro vinculante estabelecido pelo STJ em regime de REsp repetitivo para a mesma hipótese fático-jurídica – parece-nos ineficiente, pois, como cediço, a admissibilidade do recuso excepcional revela-se na práxis extremamente restrita, podendo ser negado o seu juízo de prelibação por conta dos mais diversos aspectos (=intrínsecos/extrínsecos).
– IV –
Como se nota, o STF e o STJ não cristalizaram um entendimento seguro sobre o significado processual dos elementos (=parâmetro e objeto) que compõem relevante espectro do instituto da reclamação mesmo diante de uma dicção que, salvo melhor juízo, parece-nos clara: as decisões produzidas sob o rótulo de vinculantes (=efeito) e erga omnes (=eficácia) constantes do art. 927 do CPC, caso sejam descumpridas pelos outros órgãos do Poder Judiciário e diversas esferas da Administração Pública, abrem aos legitimados – sem prejuízo dos recursos eventualmente cabíveis à espécie[15], bem assim preenchidos os requisitos procedimentais estabelecidos no art. 988, §5º, I[16] e II do CPC – a via direta de acesso ao Tribunal.
Destaca-se, por oportuno, que não se está defendendo a utilização da reclamação como “atalho”, expediente “per saltum”, ou mesmo “sucedâneo recursal”, mas impingindo sua força normativa estabelecida na CF e no CPC, de tal maneira que esse último diploma estabelece como conditio sine quo non (i) a inexistência de trânsito em julgado do objeto reclamado e (ii) o esgotamento das instâncias ordinárias, para ajuizamento da reclamação tanto pelas partes diretamente atingidas pela decisão negatória do paradigma repetitivo, quanto por qualquer um que possa ser atingido pelo provimento vinculante dada a ampla legitimidade peculiar desta ação.
De tal modo, conquanto se reconheça que a partir do julgamento do agravo (CPC, art. 1.021) pelo Tribunal local, sejam cabíveis embargos de declaração (CPC, art. 1.022), agravo (CPC, art. 1.042)[17], sem prejuízo da interposição de novos recursos especial ou extraordinário (por ofensa aos art. 102, caput e III e 105, III c.c. CPC, art. 489, §1º, VI, do CPC) ou mesmo ação rescisória pautada no CPC, art. 966, V, §§5º e 6º – todos aparentemente ineficazes diante da reclamação –, STF e STJ expungiram essa típica garantia constitucional processual como sendo a via adequada para que os legitimados possam requerer a revisitação de provimentos vinculantes, negando-a, ao arrepio do mesmo diploma que os permitiu realizar o “controle de verticalização e de aplicação dos precedentes obrigatórios”[18].
– V –
Somos críticos desse sistema no interior do qual confundem-se precedentes com provimentos (=pronunciamentos) vinculantes. Esses últimos, por aqui, nascem, desenvolvem-se e produzem efeitos “no” e a partir “do” âmbito das “Cortes Supremas”, irradiando-se para todo o ordenamento processual; mas, se ele está aí posto, que sejamos minimamente coerentes com o “pacote completo” (=combo).
Nesse passo, ser coerente com o modelo significa, em última análise, reconhecer o cabimento da reclamação como genuína solução processual apta a ensejar: (i) a adequação do ato impugnado ao parâmetro vinculante ou (ii) proceder a revisão deste último composto em sede de julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos.
O futuro da reclamação à vista do “estado da arte” aproximar-se-ia, metaforicamente, tal qual o destino do Gato de Schrödinger[19], ou seja, não saberemos, ao certo, o que está no interior da caixa enquanto não for aberta pelo protagonista que suscita o colapso (=paradoxo) o qual, ao fim e ao cabo, é o responsável pela vida ou pela morte do Felis catus.
[1] Para uma análise a respeito da origem e evolução da reclamação no sistema constitucional processual brasileiro, consultar: ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 8ª Ed., São Paulo: RT, 2016, p. 1.057-1.059.
[2] “A reclamação tem semelhanças com os recursos, pois é utilizada para questionar perante tribunal superior decisão que aplicou o direito de maneira considerada errônea. Contudo, não se confunde com os recursos, pois um dos mais importantes requisitos para recorrer é a sucumbência (perda da ação). Só recorre quem perdeu. Já no caso da reclamação constitucional, reclama quem ganhou, exigindo que se aplique decisão anterior que beneficia o recorrer. Esse argumento convence na substância, mas não formalmente, pois na reclamação protesta a parte que foi prejudicada por certa decisão, invocando decisão anterior que o favoreceu. O fato é que o efeito vinculante da decisão anterior deveria impedir a decisão discrepante e a reclamação constitucional pode ser usada contra decisão administrativa e não somente judicial, ao contrário do recurso. Por fim, os recursos têm rígidos prazos preclusivos, enquanto a reclamação não tem prazo determinado. Logo a reclamação não pode ser considerada recurso” (DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya. Curso de processo constitucional: controle de constitucionalidade e remédios constitucionais. 7ª Ed. São Paulo: RT, 2020, p. 334-335).
[3] “A reclamação foi considerada incidente processual, aproximando-se do procedimento de conflito de competência. Isso não convence, pois reclamação não se limita preservar competência de certo tribunal. Constitui também meio de imposição da interpretação adotada pelo STF, sendo justamente essa a finalidade da reclamação constitucional que examinamos aqui. A alegação de que se está impugnando decisão tomada em outro processo, surgindo um incidente, não é adequada. Primeiro, porque não se exclui, em tese, a reclamação após o trânsito em julgado de uma decisão, ao contrário do incidente. Segundo – e mais importante –, porque a ligação processual entre duas demandas não indica sempre que a segunda seja incidente da primeira. Com efeito, as cautelares e as rescisórias são ações autônomas e não incidentais apesar da clara ligação processual com a ação principal” (DIMOULIS; LUNARDI, Op. cit., p. 335).
[4] “Seguindo parte da doutrina, o STF decidiu que a reclamação ´situa-se no âmbito do direito constitucional de petição, previsto no art. 5º, XXXIV, da Constituição Federal`. Esse entendimento possibilita que a regulamentação do instituto ocorra em âmbito estadual, por ser questão de procedimento, não havendo invasão de competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I e 24, XI, da CF)” (DIMOULIS; LUNARDI, Op. cit., p. 335). Todavia, cabe esclarecer que na Rcl 1.728, Rel. Min. Luiz Fux, jul. 24.11.2015, Dje 18.4.2016, a Primeira Turma do STF reconheceu a natureza de ação à reclamação.
[5] ROSSI, Júlio César. Aspectos processuais da reclamação constitucional. Revista Dialética de Direito Processual, n. 19, p. 49-60, out. 2004; ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 3ª Ed. São Paulo: RT, 2019, p. 907-908; MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de direito processual civil moderno. 3ª Ed. São Paulo: RT, 2017, p. 1.375; DIMOULIS; LUNARDI, Op. cit., p. 335-336 e ASSIS, Op. cit., p. 1.060.
[6] Adverte-se que, neste ensaio, o instituto será abordado no ambiente relativo às competências do STF e do STJ.
[7] Destaca-se, por oportuno, que possuem efeitos vinculantes não só a decisão final de mérito (acórdão) como também a eventual medida liminar cautelar eventualmente concedida, nos termos dos arts. 11, §1º e 28, parágrafo único, da Lei 9.868/99.
[8] MEDINA, Op. cit., p. 1.377.
[9] ABBOUD, Op. cit., p. 914-915. Nesse sentido: Rcl 32.945/RS, Min. Relator Reynaldo Soares da Fonseca, 3ª Seção, julg. 22.2.2017, Dje 02.03.2017.
[10] Deve-se registrar, todavia, como hipóteses de exceções à subsidiariedade, a Rcl 6318, Rel. Min. Teori Zavascki, julg. 29.9.2009 e nas medidas liminares na Rcl 32.035, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, jul. 28.9.2018 e 01.10.2018, nas quais o STF reconheceu o cabimento de reclamação antes do esgotamento dos recursos do processo principal, inclusive, algumas que suspenderam ação penal antes da primeira audiência, cf. DIMOULIS; LUNARDI, Op. cit., p. 339, nota nº. 81.
[11] Adotando a teoria da transcendência: Reclamação 2.363, Rel. Min. Gilmar Mendes, jul. 23.10.2003; Medida Cautelar na Reclamação 2.986, Real. Min. Celso de Mello, julg. 11.3.2005; Reclamação 4.987, Rel. Min. Gilmar Mendes, julg. 07.3.2007. Não a adotando: Agravo Regimental na Reclamação 5.082, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. 19.4.2007; Agravo Regimental na Reclamação 2.475, Rel. Min. Carlos Velloso, julg. 02.8.2007; Agravo Regimental na Reclamação 2.990, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julg. 16.8.2007.
[12] “Para efeitos didáticos, vale distinguir revisão de superação. De acordo com o art. 986 do CPC, inserido no capítulo que dispõe o Incidente de Resolução de Demanda Repetitivas, a revisão da tese jurídica tem lugar no mesmo tribunal que a instituiu, sendo que pode ser por ele próprio realizada de ofício, ou requerimento pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição. O disposto vale também para os casos de julgamento dos recursos extraordinário e especial repetitivos, cujas revisões serão feitas no STF ou no STJ, respectivamente. Revisar a tese jurídica firmada significa reinterpreta-la de modo a ressignificar seu contexto de incidência, seja para ampliá-lo, reduzi-lo o mesmo para anulá-lo. De outro ângulo, a superação do entendimento sediado nos provimentos vinculante não se sujeita a uma ´análise concentrada´, isso porque, no caso concreto, é plenamente possível que o juiz competente afaste a incidência do provimento em razão de vislumbrar novo argumento, participado pelas partes (arts. 9º e 10 do CPC), estranho aos fundamentos que embasaram aquele teto vinculante. Isso ocorrendo, não haverá qualquer óbice para que o juiz conheça da ´nova fundamentação` e, uma vez procedente, decida a causa admitindo-a. (…) Notem que tal possibilidade decorre diretamente da exigência constitucional da motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, da CF), a qual estabelece que as decisões devem ser adequadamente fundamentadas (art. 489, §1º e incisos do CPC). O próprio inciso VI desse artigo legal afirma que não pode o juiz deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente, sem que demonstre a superação do entendimento firmado nesses textos vinculantes. (…) A diferenciação ora apresentada é imprescindível para permitir que não haja engessamento jurisprudencial brasileiro e que possibilite a ressignificação de teses e institutos jurídicos em razão da historicidade”. (ABBOUD, Op. cit., p. 1.117-1.119).
[13] “RECLAMAÇÃO. RECURSO ESPECIAL AO QUAL O TRIBUNAL DE ORIGEM NEGOU SEGUIMENTO, COM FUNDAMENTO NA CONFORMIDADE ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A ORIENTAÇÃO FIRMADA PELO STJ EM RECURSO ESPECIAL REPETITIVO (RESP 1.301.989/RS – TEMA 658). INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO INTERNO NO TRIBUNAL LOCAL. DESPROVIMENTO. RECLAMAÇÃO QUE SUSTENTA A INDEVIDA APLICAÇÃO DA TESE, POR SE TRATAR DE HIPÓTESE FÁTICA DISTINTA. DESCABIMENTO. PETIÇÃO INICIAL. INDEFERIMENTO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO”.
[14] TORRANO, Bruno. Pragmatismo no direito e a urgência de um pós-pós-positivismo no brasil. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2018, p. 211.
[15] “Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: (…) § 6º A inadmissibilidade ou o julgamento do recurso interposto contra a decisão proferida pelo órgão reclamado não prejudica a reclamação (g.n.)”. Por evidente que, não sendo a reclamação uma espécie de recurso, aforada a ação diretamente no STF/STJ, a inadmissão do recurso ou o seu julgamento em nada afetará o instituto, quer em razão da distinção de órgãos para julgar tanto um quanto o outro, quer em razão da ampla autonomia procedimental existente entre os dois meios de impugnação.
[16] Em relação a esse requisito negativo, esclareça-se que a legislação (=CPC) incorporou o teor da Súmula 734 do STF: “Não cabe reclamação quando já houver transitado em julgado o ato judicial que se alega tenha desrespeitado decisão do Supremo Tribunal Federal” (aprovada em Sessão Plenária de 26.11.2003).
[17] A respeito do cabimento do recurso de agravo previsto no art. 1.042 do CPC, acertada se mostra a conclusão de Nelson Nery Junior e Georges Abboud: “O cabimento do agravo do CPC 1042 contra a decisão colegiada do TRF ou TJ que, ao julgar o agravo interno, mantém a decisão do Presidente ou Vice-Presidente do tribunal que negou seguimento ao RE/REsp (CPC 1030 I) ou julgou a questão do sobrestamento (CPC 1030 III), é conclusão que se extrai do sistema constitucional, para que se dê ao CPC 1030 § 2.º e CPC 1042 conformidade constitucional, que fixa a competência do STF e do STJ para julgar o RE e o REsp, respectivamente. Isto significa que a sistemática trazida pela reforma constante da Lei 13.256/2016 só não será inconstitucional se se der aos dispositivos aqui mencionados interpretação conforme a Constituição. Criou-se, na verdade, mais uma etapa para o juízo de admissibilidade de RE/REsp: negado seguimento ao recurso ou julgada a questão do sobrestamento, o recorrente não poderá interpor agravo diretamente no STF/STJ, mas sim deverá interpor agravo interno (CPC 1021) para o colegiado do tribunal local. Este é o passo intermediário criado pela Lei 13.256/2016. O entendimento contrário, de que não caberia nenhum recurso do acórdão que resolver o agravo interno, ensejaria a conclusão de que estaria sendo subtraída a competência constitucional do STF/STJ, ou, caso os tribunais superiores concordem com esse sistema, estariam renunciado à competência constitucional imposta a eles por texto expresso, o que é inadmissível” (Recursos para os tribunais superiores e a lei 13.256/2016. Revista de Processo n. 257. São Paulo: RT, jul. 2016, p. 233-234).
[18] ARAÚJO, José Henrique Mouta. A reclamação constitucional e os precedentes vinculantes: o controle da hierarquização interpretativa no âmbito local. Revista de Processo n. 252. São Paulo: RT, fev. 2016, p. 9.
[19] O “Gato de Schrödinger” é uma experiência mental, verdadeiro paradoxo, idealizado pelo físico austríaco Erwin Schrödinger (1.935). Grosso modo: há um Gato cerrado em uma caixa na companhia de uma fonte de decaimento radioativo, um contador Geiger e um frasco de vidro selado com veneno. Se o contador Geiger detectar o decaimento radioativo de um único átomo, ele quebra o frasco, matando o felino. Contudo, não é possível observar o interior do invólucro; logo, ao menos enquanto o experimento permanecer lacrado (=sem acesso pelo observador), é impossível saber se o bichano está vivo ou morto. Por isso, considera-se que o animal está, ao mesmo tempo, vivo-morto.