Disclaimer: Os fatos e a análise jurídica que seguem aconteceram em um País chamado Eldorado,[1] qualquer semelhança com a prática brasileira não é intencional e representa mera coincidência. Importante, ainda, advertir que a análise é realizada em atividade doutrinária equivalente à de docência e que eventuais correspondências com as personagens servem apenas para a reflexão do próprio leitor.
Arthur é uma criança de apenas 10 anos de idade. Aos 4 anos, foi diagnosticado como neuroatípico. Ele possui algumas características (espectros) que o colocam no Transtorno do Espectro Autista, muito embora aos olhos dos neurotípicos ele pareça “normal”. De perto, ninguém é “normal”![2]
Para os menos avisados, o autismo não é uma doença, que pode ser “tratada” e curada. É uma condição que determinados indivíduos possuem. Os autistas de “alta funcionalidade” – como é o caso de Arthur – utilizam da linguagem sem grande repercussão social. Normalmente, apresentam alguma dificuldade de interação em grupo, sensibilidade para sons repetitivos, problemas com rupturas de rotinas inesperadas, dentre outras dificuldades, que representam obstáculos importantes durante a infância, principalmente. Duas características muito frequentes são a rigidez comportamental e a resistência a variações.
Por outro lado, muitos deles desenvolvem um QI de alto desempenho, com maiores habilidades visuais e espaciais do que um “neurotípico”, são espetaculares na percepção de detalhes. Alguns, inclusive, os savants, são considerados verdadeiros gênios. Se você está lendo este texto no seu computador ou no seu supercelular, em muito se deve a várias mentes neuroatípicas, que habitam o Vale do Silício.[3]
A apresentação acima serve apenas para contextualizar o problema.
Em Eldorado, os autistas – permitam chamá-los assim –, diante das dificuldades comportamentais que apresentam, são considerados “pessoas com deficiência” (PCD), nos termos da lei. Tal lei garante a essas pessoas o direito à isenção do imposto sobre produtos industrializados para aquisição de automóveis, sem limitação de valor, mesmo que o habilitado a dirigir seja outra pessoa que não o próprio sujeito ativo.
Não bastam o reconhecimento em lei do direito e o diagnóstico multidisciplinar da condição de autista, é necessário que aquele que pretenda exercer o direito à isenção submeta-se a uma “perícia” pelo sistema público de saúde para receber uma “confirmação” diagnóstica. Eldorado adora uma burocracia. Isso, todavia, não é suficiente. Depois de ratificado o diagnóstico, exige-se ainda uma “autorização” da Delegacia Tributária eldoradina, para ser apresentada ao vendedor do automóvel.
O processo acima toma bastante tempo, como todo processo burocrático e inútil.
No caso, durante os procedimentos burocráticos, o Presidente de Eldorado, “no uso de suas atribuições constitucionais”, adotou uma Medida Provisória, com força de lei, para, dentre outras disposições, impor o teto de E$ 70.000,00 (setenta mil elds) – moeda local, cuja cotação para o Real é 1 para 1 – para as isenções do imposto em questão.
Na Constituição da República de Eldorado, a Medida Provisória somente pode ser adotada pelo Presidente em caso de relevância e urgência. Como sói, no plano teórico, os requisitos formais de relevância e urgência devem ser devidamente explicitados pelo Presidente, os quais podem ser controlados judicialmente, para que não ocorra a usurpação da função legislativa pelo líder do executivo. Contudo, em Eldorado, a prática de Medidas Provisórias formalmente inconstitucionais é comum desde 1994. Na década de 90, era um assunto tratado amplamente pela doutrina, causava certo rubor e frisson. Como o hábito faz o monge, a prática foi se solidificando e hoje tornou-se um não assunto. Sucessivos presidentes adotaram milhares de Medidas Provisórias sem qualquer accountabilty sobre seus requisitos e tudo ficou como tal. Normalizou-se o inconstitucional! Seria isso um exemplo de mutação constitucional pela prática sucessiva de inconstitucionalidades?
Seja como for, em Eldorado, há Constituição. E Constituição é LIMITE AO PODER, certo?
A Constituição eldoradina possui garantia da anterioridade anual e nonagesimal contra o aumento ou a instituição de tributos. A cobrança de tributos instituídos ou majorados somente pode ocorrer a partir do ano seguinte (exercício financeiro) à “lei” e respeitado o prazo mínimo de 90 (noventa) dias de sua publicação, para remediar os “tratoraços” legislativos, bastante comuns em Eldorado, no dia 31/12, no apagar das luzes do ano.
Certos dessa garantia, os pais de Arthur procuraram uma concessionária para a aquisição de veículo em valor superior ao teto instituído pela MP, ainda durante o prazo da anterioridade. No entanto, a burocracia eldoradina não tem muito apreço aos limites constitucionais.
A compra do veículo com isenção se dá por faturamento diretamente da fábrica. Para que a emissão da nota fiscal-fatura ocorra sem o imposto sobre produtos industrializados – sobre o qual a fábrica é substituta tributária –, é necessário que solicite autorização à Delegacia Tributária (sim, mais uma, nada obstante todo o processo já realizado anteriormente). Eldorado está em franco desenvolvimento digital de seus procedimentos burocráticos. Muito disso se deve às restrições impostas pela pandemia da Covid-19, que acelerou a virtualização de atos físicos.
De um modo geral, a digitalização é muito bem-vinda, permite o acesso a diversos serviços estatais, à distância de um clique. No entanto, ela tem suas armadilhas.
No caso da isenção, a Delegacia Tributária implantou um bloqueio no sistema que não permite, desde a publicação da MP, a solicitação de qualquer pedido de veículo em valor superior aos E$ 70.000,00 (setenta mil elds).
Os habitantes de Eldorado já estão acostumados com ilegalidades do Poder Público, nomeadamente do Executivo. Isso é tão comum, que empresas que necessitam de autorizações estatais rotineiras já contratam mensalmente escritórios de advocacia para assisti-los em mandados de segurança e outras ações contra os atos abusivos do Estado. Tão normal que, por lá, sequer se qualifica isso de autoritarismo executivo, já é banal! Lá há o direito fundamental de acesso à jurisdição, afinal, há juízes em Berlim, correto?
Arthur, por seus representantes legais, impetrou Mandado de Segurança, certo de que o Poder Judiciário – cuja função primordial é o poder para dizer o direito de modo imparcial – iria espancar de pronto a flagrante ilegalidade.
Diante do direito líquido e certo e da urgência para a aquisição do automóvel devido à necessidade de deslocamentos constantes de Arthur para suas terapias de costume, foi realizado o pedido liminar.
Tudo a favor. Regra constitucional, jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional Eldoradino, deferimento de liminares em casos iguais.
Porém, Eldorado não é para “amadores”. O juiz de primeiro grau indeferiu o pedido liminar sob o argumento de que, nada obstante a jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional sobre a aplicação da anterioridade anual e nonagesimal para as isenções, na sua opinião, a melhor solução corresponde ao entendimento da Corte lá em 1964, que decidia que a isenção era uma hipótese de suspensão da cobrança do tributo, sendo que não impedia a incidência da norma tributária. Assim, a incidência sempre ocorreria, mas enquanto a isenção estivesse em vigor, o Estado não poderia cobrar o tributo. No entanto, levantada a isenção, a cobrança poderia ser imediata, pois sempre houve a incidência tributária.
Uma digressão analítico-dogmática: A nossa doutrina tributária, de tradição analítica e com base invejável em teoria do direito, já resolveu há muito o problema da relação entre a incidência (suporte fático) da regra tributária e a regra de isenção. Desde 1976, José Souto Maior Borges trata a isenção como uma espécie de impedimento de incidência da regra tributária, produzindo aquilo que qualificou de “fato gerador isento”, dando origem à tese da isenção como “hipótese de não-incidência tributária, legalmente qualificada”. O entendimento é seguido por gigantes, tais como Geraldo Ataliba, Paulo de Barros Carvalho, Hugo de Brito Machado,[4] Roque Carrazza,[5] dentre outros.
Uma digressão jurisprudencial: O Tribunal Constitucional de Eldorado, tal como aconteceu com o nosso STF, desde 2000, pacificou o entendimento no sentido do caráter jurídico da isenção, indo ao encontro da doutrina acima. Desde a Medida Cautelar na ADI 2325, o STF entendeu que qualquer supressão ou alteração de benefício fiscal para regime mais gravoso levaria à configuração de um aumento indireto de tributo, circunstância a exigir a observância da garantia da anterioridade. Tanto no nosso STF, como no Tribunal Constitucional eldoradino, o posicionamento foi respeitado de forma unânime, desde então, representando uma hipótese, rara, de consolidação jurisprudencial estável.
Esses dois elementos conjugados demonstram que o juiz de primeiro grau não poderia ter indeferido a liminar a partir de “seu convencimento”. É necessário dizer que o juiz, em um ambiente republicano (res poppulli = coisa do povo, para o povo e pelo povo), regido por uma constituição, não pode se insular em entendimentos próprios, como se ele fosse o oráculo da verdade e da justiça.
O juiz integra um sistema de órgãos jurisdicionais, compostos de inúmeros juízos de igual hierarquia e alguns outros de hierarquia revisora superior.
Não cabe no argumento da “independência judicial” a liberdade para lançar opiniões, impressões ou convicções na forma de decisões judiciais. Deve haver uma responsabilidade grave na estrepitosa função de julgar os casos de seus pares.
O lugar para que o juiz apresente teses, elabore doutrina e busque alterar os entendimentos doutrinários ou jurisprudenciais postos é na atividade docente-doutrinária. Ele é bem-vindo para a arena do debate público em questão, deve, porém, ser alertado que posições despidas de substrato normativo em sua fundação serão demolidas.
A decisão jurisdicional, contudo, não pode ser utilizada neste intento. A coisa perde o controle quando o juiz se utiliza de sua autoridade heterocompositiva, para decidir conforme sua vontade, suas impressões, seu desejo.
A nossa doutrina vem, há muito, combatendo esses comportamentos, que já foram qualificados de discricionariedade judicial,[6] solipsismo,[7] voluntarismo,[8] subjetivismo,[9] dentre outras, que revelam o agir antirrepublicano no desempenho da função jurisdicional.
A tentativa de remediar a situação de descontrole jurisdicional se deu através do novo CPC, que entrou em vigor há 5 (cinco) anos em Eldorado. Lá, há regra expressa para que os Tribunais – incluindo na expressão os juízes, por óbvio, diante da necessidade de autorreferência do Poder Judiciário – mantenham a sua jurisprudência íntegra, estável e uniforme. Uma das inspirações para a regra, como ocorre aqui no Brasil, foi a doutrina americana e inglesa do stare decisis, na qual uma das normas imperativas é o tratamento equivalente dos casos semelhantes (treat like cases alike).
O problema é que as mudanças não ocorrem pela lei. E o exemplo está posto.
Impressiona que a doutrina que prega o stare decisis seja a mesma que propõe o empoderamento judicial para o atingimento de uma decisão “justa”[10], sem que haja controle normativo estabelecido a partir do texto legal ou constitucional. O voluntarismo judicial não dá em árvore, não é um dado da natureza. Ele nasceu em algum lugar e o paciente zero não foi o julgador. Foi o estudante que, sem saber, foi infectado com o vírus do autoritarismo judicial[11] e, ao ser investido na jurisdição, passou a agir do modo como ensinado. Esse vírus mata o direito, destrói seus limites e o coloniza a partir da opinião de poucos, sejam pelos promotores doutrinários do instrumentalismo ou do ativismo, seja pelos magistrados “encantados pela sereia”. Sofremos uma pandemia do autoritarismo judicial e a única cura é o desencantamento.[12]
A única justiça que se deve esperar de um juiz é o cumprimento da legalidade constitucional. Nada mais, nada menos. Quando e se Eldorado atingir esse objetivo de forma padronizada e massificada, realizará um salto civilizatório sem precedentes.
De volta ao caso.
Arthur agravou da decisão, obviamente uma decisão esdrúxula como essa não se sustentaria perante a revisão pelo Tribunal competente. Recurso enxuto, que demonstra com objetividade a jurisprudência do Tribunal Constitucional e o arrimo na melhor doutrina. Pedido de efeito suspensivo da decisão de indeferimento e de concessão do efeito ativo para o deferimento da liminar. Tudo certo, não é? Ledo engano.
Depois de longos dias de processo concluso no gabinete do relator, surge a decisão de indeferimento da liminar. Qual o fundamento? Falta urgência. Como o desembargador qualifica a falta de urgência? Ele somente afirma, laconicamente, que “não vê urgência para a concessão da liminar”, levando em consideração a “célere tramitação do processo eletrônico”. Agrega mais um argumento, ao afirmar que “não é de boa prática a parcelarização da prestação jurisdicional em decisões [seja lá o que isso queira dizer] emanadas de diferentes instâncias e separadas por pequeno espaço de tempo, fadadas eventualmente à curta eficácia, ensejando sucessivas ordens e contra-ordens de cumprimento, bem como estando sujeitas a variados recursos”.
O exame jurídico do pronunciamento assusta, ao se verificar o grau de profundidade do instrumentalismo processual na prática. Trata-se de um verdadeiro “instrumentalismo” estrutural.
De cara, verifica-se que a expressão “urgência”, ou seus codinomes legais “risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação”, representa conceito jurídico indeterminado. É dever do julgador, em sua motivação, a demonstração fática da existência ou da inexistência do requisito em questão. Inclusive, o CPC de Eldorado estabelece que não se considera fundamentada a decisão que não explicite o motivo concreto da incidência, ou não, do conceito no caso. Assim, no mínimo, o que se espera de uma decisão é que indique que a falta de urgência decorre de A, B e C, ou então que a espera decisória de mérito, no caso, se justifica por D e F.
O único fundamento para sustentar a pretensa falta de urgência é a “celeridade” do processo eletrônico. Outro slogan sem qualquer demonstração. Quão célere é o julgamento de casos no Tribunal e na primeira instância? Não há qualquer elemento disso. O indeferimento utiliza-se da própria estrutura jurisdicional para negar o direito da parte. Algo inimaginável em um ambiente constitucional. Utiliza-se uma suposta – embora notoriamente equivocada – eficiência temporal da prestação jurisdicional, para negar a satisfação imediata e necessária de um direito urgente. Aqui se encaixa a metáfora do hospital feita em prol dos médicos e não do paciente.
A análise da urgência não passa pela (falta de) “ligeireza” do julgamento da corte – e venhamos e convenhamos, os julgamentos em Eldorado são tão rápidos como no Brasil. O seu exame se dá conforme a alegação da necessidade expressada nos fatos narrados no pedido do requerente.
No caso analisado, há necessidade para o uso do veículo, como alegado. Certos de que poderiam fazer uso da isenção (expectativa legítima de segurança jurídica em sua perspectiva de previsibilidade), os pais de Arthur venderam o único carro da família, como forma de capitalização para a aquisição do novo veículo. Não contavam com os obstáculos da administração tributária e tampouco com as barreiras jurisdicionais. Desde então, Arthur tem realizado os seus deslocamentos – para as rotineiras e diárias terapias e para a escola –, através de serviços de transporte de aplicativos, que, obviamente, são operados por veículos e motoristas diferentes.
O que para um neurotípico pode ser algo bastante simples, para um neuroatípico representa um sofrimento terrível, em vista da rigidez comportamental e pela falta de previsibilidade. A troca constante de veículos proporciona a alteração sensorial do ambiente, o que afeta a sensação de segurança, gerando grande quebra de estabilidade. A troca de motoristas, por sua vez, incrementa a alteração de segurança e previsibilidade, pois o infante não sabe quem é a pessoa, se pode confiar ou não, sem falar na mudança da forma de condução do veículo.
A questão que deve ser respondida no exame liminar, à luz da situação fático-concreta, é se a espera de Arthur para exercer o seu direito pode aguardar o julgamento final do mandado de segurança ou se a espera para ele representa grave violação ao seu direito, e sobre sua condição, sendo, por conseguinte, insuportável. De nada interessa a (falta de) rapidez da jurisdição.
O fundamento decisório, ainda, poderia ser utilizado para o indeferimento de qualquer outra liminar. É a decisão que Teresa Arruda Alvim chama de “vestidinho preto”[13], ou de decisão “prêt-a-porter”[14], na qualificação de Streck. A necessidade de explicitação da fundamentação pelo julgador, nos termos do art. 93, IX, da CF, exige o que Georges Abboud chama de accountability judicial:[15] uma prestação de contas clara, transparente, cognoscível e verificável das razões de decidir. Assim, a resposta está diretamente relacionada com a “questão da explicação (ex + plicare), que etimologicamente significa extrair, retirar, pôr para fora (ex) as dobras (plicas). Só se (a)plica o que antes se (ex)plica”.[16]
Entender, retoricamente, pela falta de urgência, é uma forma mecânica de não-julgar. Pouco importam as circunstâncias do caso, nada interessa a necessidade fática, o importante é retirar o processo do gabinete, mecanicamente fugir tangente.
Falta fundamentação na decisão e tal vício representa um defeito grave, pois ela depõe contra o próprio direito. Ela funda a negação do próprio direito dentro do direito, fazendo nascer um estado de exceção, nos termos apresentados por Giorgio Agamben.[17] Calmon de Passos, em linha semelhante, ensinava sobre o grave problema da falta de fundamentação: “[d]ecidir sem fundamentar é incidir no mais grave crime que se pode consumar num Estado de Direito Democrático. Se a fundamentação é que permite acompanhar e controlar a fidelidade do julgador tanto à prova dos autos como às expectativas colocadas pelo sistema jurídico, sua ausência equivale à prática de um ilícito e sua insuficiência ou inadequação causa de invalidade”.[18]
O argumento menos comum e mais intrigante do indeferimento será analisado a partir de agora. O relator entende que o pedido não pode ser deferido, pois levaria a uma “parcelarização da tutela jurisdicional”. É de se imaginar a figura. Parcelarizar seria como transformar a tutela jurisdicional em um grande queijo, que é dividido por fatias? A questão é séria e se revela necessária para se compreender o fundamento.
Não há qualquer parcelamento da tutela jurisdicional na atividade revisora-recursal. O que acontece na relação entre primeiro e segundo grau é a sobreposição decisória da instância revisora. Trata-se do famoso efeito substitutivo[19] de uma decisão (juízo ad quem) sobre a outra (juízo a quo). Utilizar como fundamento, para o indeferimento da liminar, a possibilidade de o juízo a quo julgar de modo diverso na sentença de mérito representa a negativa da prestação jurisdicional pelo simples fato de não haver sistematicidade decisória entre no Poder Judiciário. Demonstra a submissão do órgão revisor ao voluntarismo do primeiro grau. É dizer: “não corrigirei o error in iudicando, porque o juiz vai mudar a decisão liminar na sentença mesmo.” A manutenção de uma decisão flagrantemente ilegal e inconstitucional seria, por conseguinte, a boa prática a que se refere o relator?
A literatura é bastante rica nesses exemplos. O argumento caberia muito bem na personagem “o juiz” de O Processo, de Franz Kafka. Porém, nem mesmo a mente criativa do genial autor foi capaz de produzi-lo.
Isso é fruto de um consequencialismo judiciocrata, sem qualquer fundamento prático ou jurídico, que visa apenas e tão somente o bem-estar dos próprios julgadores na imunização contra os supostos “recursos sucessivos”. É a velha prática da jurisprudência defensiva, em nova versão. Melhor seria, nesse mundo da fantasia, acabar com qualquer recurso contra a decisão de primeiro grau, para não incomodar o Tribunal.
Obviamente que houve embargos de declaração frente às flagrantes omissões. Porém, em Eldorado, a procrastinação seguiu seu curso natural. Mesmo sendo embargos de declaração contra indeferimento de liminar inaudita altera parte, o que fez o douto relator? Determinou a intimação da parte adversa. Punto i basta!
A parte boa de tudo isso é que Eldorado é uma terra muito distante, de cultura jurídica e jurisdicional pouco influente, cujos rompantes de autoritarismo e voluntarismo jamais aportarão por estas bandas. Oxalá, doutrina e práxis brasileiras nunca bebam dessas águas…
[1] O mesmo País no qual se passa o filme “Terra em transe”, direção de Glauber Rocha, de 1967.
[2] Já mostra a canção Vaca Profana de Caetano Veloso e o livro “De perto ninguém é normal”, de Mirian Goldenberg.
[3] Estima-se que apenas 10% dos autistas sejam considerados savants.
[4] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 27.ed., São Paulo : Malheiros, 2006, p. 244.
[5] CARRAZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário, 16.ed., São Paulo : Malheiros, 2001, p. 187
[6] ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2014, passim. Para um debate a respeito dessa acepção e a redução do conceito de discricionariedade para arbitrariedade consultar: SOUSA, Diego Crevelin de. ROSSI, Júlio César. DIETRICH, William Galle. #26 – Afinal, o que se deve compreender a respeito da discricionariedade judicial e do garantismo processual?, disponível em https://bit.ly/3wEzgsU, acesso em 17/06/2021.
[7] STRECK, Lenio. Verdade e Consenso, São Paulo : Saraiva, 2014, passim.
[8] SCHAUER, Frederick. The force of law, Cambridge, Massachusetts : Harvard University Press, 2015, pp. 75-92.
[9] PEREIRA, Mateus Costa. Introdução ao Estudo do processo: fundamento do garantismo processual brasileiro, Belo Horizonte : Editora Letramento, 2020, pp. 267-282.
[10] Vejamos os claros exemplos de Marinoni, Mitidiero, Arenhart, Zanetti, dentre outros.
[11] MENDONÇA, Luís Correia de. Virus autoritário e processo civil, in Julgar nº 1, disponível em https://bit.ly/2wMRRtf, acesso realizado em 17/06/2021.
[12] CARVALHO FILHO, Antonio. #56 – A pandemia do vírus autoritário: um exame sobre os poderes instrutórios, disponível em https://bit.ly/3aNoRR1, acesso realizado em 17/06/2021.
[13] Decisão coringa que pode ser lançada em qualquer ocasião, tal qual o vestido preto que as mulheres possuem nos guarda-roupas. ARRUDA ALVIM, Teresa. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil: artigo por artigo, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 795.
[14] Decisão hiperpadronizada, produzida em série, sem qualquer vinculação direta com o caso. STRECK, Lenio Luiz. Art. 489, in: _____; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo : Saraiva, 2016, p. 685.
[15] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro, 4.ed., São Paulo : Thomson Reuter Brasil, 2020, pp. 1341-1342 e 1476-1479. O conceito também pode ser visto em SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Fundamentação das decisões judiciais: a crise na construção de respostas no processo civil, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 213.
[16] Beclaute Oliveira Silva, Contornos da fundamentação no novo CPC, in Lucas Buril de Macêdo, Ravi Peixoto e Alexandre Freire, Novo CPC doutrina selecionada, vol. 2, Salvador : Juspodivm, 2015, p. 361.
[17] Fizemos a análise desse fenômeno com apoio em Agamben em outra oportunidade: “Perceba-se, o estado de exceção é um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei, ou na melhor forma diacrítica de Agamben, ‘força de lei’. ‘O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa.’ Deste modo, a decisão com força de lei é um enunciado performático austiniano por essência.
A falta de fundamentação decisória é, por conseguinte, uma anomia que funda o estado de exceção e que ultraja o próprio direito pelo ato de violência (=força) de uma instituição imprescindível à manutenção do equilíbrio jurídico de nosso ordenamento, a jurisdição, em razão da necessidade de observância de seu dever de contramajoritariedade. Essa decisão, portanto, funda zona anômica (grosso modo, falta de regras [regulação] e objetivos [fins]) na qual suspende-se o direito para, dentro dele próprio, dar potência de lei para a decisão judicial que sequer respeitou os seus limites. Em outras palavras, representa um ato de violência, que deixa de ser qualificado como jurídico-normativa e por isso se coloca no paradoxo do ‘estar-fora’ do direito e pretender pertencer a ele.
A fundamentação qualifica a decisão como o meio lícito para a solução do litígio posto à heterocomposição. Apenas e tão somente a fundamentação que responde plenamente ao contraditório, em sua feição de limite, à contrastabilidade, em sua profundidade de análise das possibilidades apresentadas, e à vinculação à legalidade qualificam a decisão com legítima “força de lei”, ou seja, potência e eficácia vinculativas juridicamente qualificáveis. Note, apenas e tão somente a fundamentação-de-acordo-com-a-lei potencializará a decisão-com-força-de-lei.
Por outro lado, a ausência da fundamentação dá a qualificação da decisão como meio fora do direito. Assim, a potência do estado-de-lei da decisão com déficit de motivação não respeita a nada nem a ninguém, não precisa de qualquer chave para acessar lugar algum. Simplesmente, utilizando-se de violência anômica, arromba a porta que estava a proteger as partes e impõe seu veredito, depondo o direito com força de lei. CARVALHO FILHO. Antônio. CARVALHO, Luciana Benassi Gomes. Falta de fundamentação como “estado de exceção”: uma visão a partir da deficiência endoprocessual e do ativismo judicial, in: Processo e Liberdade, Editora Thoth, 2019, p. 140-141.
[18] PASSOS, José Joaquim Calmon de. O magistrado, protagonista do processo jurisdicional? In: Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, ano 7, n. 4, Belo Horizonte : Editora Forum, jan./mar. 2009, p. 12.
[19] Como classicamente ensinado por MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, 11.ed., Rio de Janeiro : Forense, 2004, pp. 394-405.